FELIPE MAIA

Journalist, ethnomusicologist, d.j.

I’m a Brazilian journalist and ethnomusicologist (anthropology + music + sound) based in Europe. In the past ten years, I’ve worked with a number of media outlets and led several projects crossing popular music and digital culture on topics like Latin American sounds, electronic-sonic technologies and Global South dialogs.
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[UOL Tab] Até Anitta entrou na onda: som das raves domina o eletrônico das periferias

Matéria originalmente publicada no UOL Tab em fevereiro de 2020.


Garrafa de água na mão, óculos escuros na cara, tênis enlameado. Pode ser à noite ou de manhã. Muitas luzes coloridas, às vezes até fogos de artifício e sinalizadores. A batida já começou, aos poucos ela pega velocidade. O som das caixas de som é tão forte que não apenas se escuta: sente-se no corpo. O ritmo já acelerou tanto que, não tem jeito, é preciso parar. Suspiro. “Drop the beat” — em português, solta o som. É rave que fala, né?

Sim, mas não se trata daquela rave que vem à cabeça, um festival gringo do tipo Tomorrowland ou uma festa com cenografia néon em uma praia distante. A rave em questão pode ser no Baile do Bega, em São Paulo, na Festa da Cerveja, no Pará, ou num encontro de carro de som no bairro do Arruda, no Recife. Ela surge de maneira nítida em sons que lembram músicas de pista, e de forma sutil na estética, na forma de fazer ou no etos da curtição. É a rave que dá título a centenas de projetos da música brasileira, com artistas que vão de Xand do Aviões do Forró a MC Madan. Até gringo tá surfando na onda que já vem rolando há algum tempo, vide Major Lazer e sua nova faixa “Rave de Favela” — uma parceria com Anitta e MC Lan. A rave se embrenhou nas músicas eletrônicas das periferias do Brasil.

O rave funk tem arrastado multidões com hits como “Sexo na Rave”, composta pelos DJs Tezinho e GBR. A música tem algumas características fundamentais dessa rave à brasileira: o sample de uma música de EDM (“Nave Espacial”, do DJ Liu e da cantora Samantha Machado), o drop (o clímax), marcações que soam tão saturadas quanto o que se ouve no psytrance e uma batida típica de funk que usa texturas de sintetizadores no lugar de percussões clássicas do gênero.

“Eu costumo pegar o sample dos sintetizadores em sites gringos feitos pra música eletrônica”, explica GBR, vulgo do Gabriel, produtor e DJ de apenas 17 anos. “Pego um bass e coloco na linha de beat, isso que é o segredo.”

Se isso parece grego, basta imaginar que o DJ usa sons da “batida eletrônica” em papéis diferentes aos que estamos acostumados a ouvir. Para o produtor, o resultado tem sido uma agenda com até seis apresentações por noite e festas tão grandes quanto o Tusca, evento universitário que reúne milhares de pessoas no interior de São Paulo.

O público universitário, diz o DJ, tem sido um grande consumidor do funk rave, mas há ao menos três anos é possível encontrar cruzamentos entre rave e funk nos bailes e fluxos de rua de São Paulo. Outros nomes, como Hollywood, GW e 7Belo, só aumentaram a força do movimento.

O que também deu base à ideia de rave nas músicas é a sofisticação dos sistemas sonoros das festas. Máquinas como o Megatron seguem uma tendência encontrada em outras quebradas brasileiras, especialmente no Nordeste do Brasil: o protagonismo de sons cada vez mais graves, muitos a bordo dos carros de som (ou paredões). “Quando eu faço a música, eu escuto no carro, eu escuto no fone do celular, porque o grave tem que bater em todos”, diz GBR.

Não é diferente no caso do encontro entre rave e ritmos baianos. “A galera do carro de som pegou o papel da rádio FM, porque o paredão chega mais rápido nas pessoas”, explica Boyzinho da Bregadeira. O artista do sul da Bahia é autor de “Trip do Boyzinho”, acessada mais de 16 milhões de vezes no YouTube.

Além dos aspectos encontrados no rave funk, a bregadeira do Boyzinho usa frases de teclado minimalistas, os pontinhos — uma tendência observada também no pagodão da região metropolitana de Salvador —, e entrega momentos idênticos à fritação de uma rave.

Shevchenko e Elloco - Reprodução/Instagram
Elloco e Schevchenko (Imagem: Reprodução/Instagram)

“Um amigo meu gosta muito de música eletrônica e muitas amigas gostam da música de paredão, aí percebi que essas músicas tinham o mesmo andamento”, explica o artista, que lembra de nomes do psytrance como Astrix e Mandala na sua lista de referências. Segundo Boyzinho, um público amplo tem se habituado a essa música outrora restrita a raves e afters.

Outro fator, conta, são os estúdios caseiros sempre conectados à internet. Esses espaços de criação estimulam o contato com gêneros que seguem o mesmo princípio de produção musical, isto é, músicas que são criadas com os mesmos softwares e técnicas no computador. “Quem imaginou que uma música eletrônica ia fazer sucesso no paredão do sul da Bahia?!”, indaga o músico.

Estouro brasileiro incontestável do ano de 2019, o brega funk não poderia deixar de beber da fonte da rave. Também estão aí o forte laço com paredões de caixas de som, o copia-e-cola de hits do EDM e o protagonismo de frequências baixas, os sons graves.

“Pra fazer brega funk com rave eu junto o kick (o bumbo) com a batida do trance, aí eu misturo com o barulho de lata que é a identificação do brega”, explica o produtor Manuel, jovem de 18 anos mais conhecido por 10GnoBeat. “Meu nome é assim porque é ‘dez de grave’ no som.”

A faixa que ele descreve tem um nome que vai direto ao ponto: “Rave Bregafunk”. Assinada pelo produtor e pelos MCs Shevchenko, Elloco, Maneiro e Salah, a canção mostra um outro aspecto observado na pegada das raves: um gosto por andamentos acelerados, uma levada hardcore, com muitas batidas por minuto — MC Troinha e MC Balakinha também entraram nessa.

Eletrônica pra todo lado

Esse processo dialoga com os avanços das novas vagas de funk do Rio de Janeiro e do tecnobrega paraense. O empréstimo de hits do dito mundo eletrônico não é algo exatamente novo para esses gêneros. Tampouco são as variações em células rítmicas. A novidade reside em experimentações que se apoiam cada vez mais na ideia de músicas eletrônicas de pista, de rave.

As canções “Summertime Sadness”, de Lana Del Rey, e “Piece of Heart”, do DJ Meduza, receberam tratamento de choque no Rio de Janeiro para atingir velocidades acima de 150 BPM. A faixa “Aquecimento da Gaiolagem”, do DJ Corvina, caberia na mesma pasta do drum’n’bass ou EBM dado seu andamento acelerado repleto de elementos percussivos.

No Pará, o encontro com funk fecha um círculo de rave nas quebradas brasileiras: o marco não é somente o uso de elementos sonoros da música de pista, mas, também, o uso desses elementos pela via do funk de São Paulo e do Rio de Janeiro — que já respiram a vibe da rave.

Entre tantos DJs e produtores paraenses que já operavam nesse encontro, o DJ Lorran se destacou por se autonomear criador do tecnofunk. “Antes, só existia tecnomelody romântico, mas eu escutava só funk e tive a ideia de colocar a letra de funk nas músicas”, conta ele. “Hoje escuto várias músicas de vários estilos, as mais famosas, no caso, e vou vendo o que dá pra pegar de cada uma.”

Foi assim que surgiu a versão local de “Tipo Rave Balança O Popo”, do MC Hollywood. A faixa vem de fábrica com a pegada da rave já que foi feita em cima de “Great Spirit”, hit do DJ e produtor holandês Armin van Buuren. A música é um dos pontos altos das apresentações do DJ desde 2016 e a produção do DJ Lorran também é sucesso.

O terceiro verão do amor?

Os jovens que lotam essas festas pelo Brasil não eram nem nascidos em 1967. Tal ano ficou conhecido como “Verão do Amor” — uma série de acontecimentos culturais, sociais e políticos que moldaram os Estados Unidos e se espraiaram pelo mundo. Naquele julho, o movimento hippie começava a viver seu ápice em festivais que antecederam o primeiro Woodstock, na simbiose de psicodélicos e música e em atitudes que ecoaram até o maio de 1968 francês.

Cerca de vinte anos depois, na Inglaterra, era a vez do “Segundo Verão do Amor”. Os solos de guitarra de Jimi Hendrix, o elã da contracultura, a idílica São Francisco californiana e a luta contra a guerra do Vietnã há muito já tinham saído de cena. Naquele verão de 1989, as emulações de cordas e bateria nos sintetizadores de Derrick May embalavam os filhos da classe trabalhadora britânica que, sob o jugo do governo de Margaret Thatcher espantavam a desesperança dançando nos clubes de Londres, Manchester e Bistrol.

Se o consumo de ecstasy parecia tomar de assalto essa juventude, tão ou mais impactante era o crescimento das festas que dariam à luz as primeiras raves. E não demorou muito para que essas raves se espalhassem pelo mundo na esteira da popularidade da música eletrônica em suas várias vertentes: hardcore, trance, psy.

Em reapropriações locais, essas festas encontravam lugar nas “free-parties” da Europa continental ou na psicodelia sincrética de Goa (outrora capital hippie da Ásia).

“As raves no Brasil começaram no Nordeste”, explica a jornalista Claudia Assef, autora do livro “Todo DJ já sambou”. “Eram gringos que traziam a música na mala, literalmente, em fitas DAT, e botavam uma decoração bem psicodélica, algo parecido com o que acontecia em Goa.”

Essas raves ganharam corpo em São Paulo nos anos 1990, em eventos como a Experience, festa que chegou a reunir 20 mil pessoas. As batidas policiais enfraqueceram o movimento, mas o ideal das raves continuou vivo na cena clubber da cidade entre 1990 e 2000 e na expansão de coletivos de festas na última década.

“Hoje temos a Mamba Negra, a Capslock, a Vampire Haus, a ODD, enfim, festas que têm um público gigante e esse espírito do início das raves: dançar, se divertir e sublimar toda essa tralha que está nos rodeando no Brasil”, diz Assef.

Seria incongruente, até preconceituoso ofuscar essa necessidade a movimentos de música eletrônica nas periferias. Ainda mais neste momento em que eventos como o fluxo da DZ7, na favela Paraisópolis, são uma ferida aberta da ação do Estado — nove jovens foram mortos ali depois de uma batida policial em novembro de 2019.

A rave resiste nas quebradas brasileiras como forma de fazer e curtir uma festa. Ela está nas megaestruturas das aparelhagens do Pará e dos bailes cariocas, em palcos que empregam um complexo mecatrônico de cenografia e iluminação impressionantes graças a empresas e coletivos particulares; na estética de cores berrantes e símbolos extraterrestres, num deslocamento do mundo real; na organização dos fluxos de São Paulo e encontros de paredão na Bahia, onde atua um modelo descentralizado que foge à agenda oficial — é a festa que anunciam pela corrente no WhatsApp.

Também há ecos da rave quando público, produtores e DJs reclamam o uso do espaço público na forma de embates que se repetem historicamente. Isto é, em vez de sítios e praias isoladas, ruas vazias e terrenos desabitados. Não à toa, uma lei municipal do Rio de Janeiro de 2008 dispunha uma série de regras para “eventos de música eletrônica, conhecidos como festas raves e de bailes do tipo funk”. O texto, que para fins práticos sufocava esses eventos, foi revogado em 2009.

Drogas e música

Se não se pode negar que a política de guerra às drogas sustenta esse tipo de legislação, também é correto afirmar que há consumo de drogas nas festas de quebradas do país — como em tantas outras festas pelo mundo. O ecstasy (ou o MDMA) também ganha menções nas músicas eletrônicas das quebradas: “Rave da Bala”, “Gosto de Bala” e “Bala Love” são algumas delas.

“O que o MDMA faz é facilitar o contato pessoal e destravar certas inibições e isso pode ser usado tanto em um contexto terapêutico quanto em uma celebração social”, explica Luis Fernando Tófoli, pesquisador em psiquiatria pela Unifesp. Recomendações para redução de danos, diz ele, incluem testes de qualidade, administração de dosagens reduzidas e interdição do uso para portadores de doenças mentais graves.

Sociólogo e professor da Unicamp, Pedro P. Ferreira lembra que o vínculo entre ecstasy e músicas eletrônicas de pista é tão forte quanto a ligação entre reggae e maconha ou LSD e rock progressivo: em ambientes propícios, todas podem gerar alterações no corpo humano. “Trata-se de experiência muito comum sentir os efeitos de uma substância sem de fato ingeri-la, apenas se deixando levar pelos sons ligados a esses efeitos”, diz ele.

Para o professor, essa conexão é tão antiga quanto as primeiras experiências humanas com psicotrópicos e rituais musicais — durante festas, por exemplo. “Embora nem todos os grupos sociais pratiquem esse tipo de associação, não acredito que tenha existido um período da história em que nenhum grupo humano o fizesse”, explica Ferreira.

Tampouco é novo, entre classe mandatária e opinião pública, o temor causado por músicas que mobilizam um grande número de jovens. No livro “Popular Music: The Key Concepts” (sem tradução para o português), de 1998, o pesquisador Roy Shuker lembra que críticas a esses movimentos sempre lançam mão de supostos sexualização, sexismo, niilismo, violência e obscenidade percebidos nas músicas ou nas festas.

Um dos alvos desse processo, diz o autor, foram as raves britânicas dos anos 1990. As músicas eletrônicas das periferias brasileiras, cada vez mais imbricadas na rave, poderiam entrar na lista. Não só pelo ataque de que já são vítimas — movidos também por preconceito de classe —, mas também pelo poder de sobrevivência e renovação.

FELIPE MAIA

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