FELIPE MAIA

Journalist, ethnomusicologist, d.j.

I’m a Brazilian journalist and ethnomusicologist (anthropology + music + sound) based in Europe. In the past ten years, I’ve worked with a number of media outlets and led several projects crossing popular music and digital culture on topics like Latin American sounds, electronic-sonic technologies and Global South dialogs.
I d.j. too.

felipemf [at] gmail [dot] com

Twitter // Instagram // SoundCloud // LinkedIn

[Folha] Na França, nova geração de artistas usa funk brasileiro para fazer rap

Matéria originalmente publicada em abril de 2019 na Folha de São Paulo. O título foi alterado pela publicação.


Embora os clichês brasileiros no exterior ainda sejam, entre outros, Carnaval, futebol e bossa nova, não é difícil imaginar que isso possa mudar com o tempo.

Na França, o Carnaval brasileiro continua objeto de sonho e a seleção ainda encanta, mas Tom Jobim já cedeu lugar aos funkeiros. Do conhecido pancadão a MCs famosos, elementos do funk brasileiro estão cada vez mais presentes nas composições de uma recente onda de rappers franceses.

Os nomes são desconhecidos no Brasil, mas PLK, Alonzo, MHD, Junior Bvndo e Guizmo são alguns dos incontornáveis da atual música urbana francesa.

Segundo o sindicato da indústria fonográfica do país, essa nouvelle vague do rap detém milhões de acessos em plataformas de streaming e assinou cerca de 40% dos discos mais vendidos no país no ano passado.

E, por vezes, o ritmo que sai das periferias brasileiras embala versos desse rap na língua de Molière — com pitadas de dialetos árabes ou africanos.

Sadek é inconteste o maior funkeiro da turma. Em setembro do ano passado, o rapper lançou o álbum “Johnny de Janeiro”. O título dá nome a seu alter ego, um anti-herói franco-brasileiro que flana pelas favelas cariocas com cabelos cacheados e jaqueta de couro.

“É um álbum de funk brasileiro, mas é um funk brasileiro em francês”, explica ele. “Me inspirei nessa música porque eu vi ali algo muito próximo ao que fazemos com o rap na periferia francesa — falar da nossa realidade sem necessariamente ser contestador.”

A ideia lhe veio à cabeça durante sua primeira viagem ao Brasil, em junho de 2017. Sadek ouviu funk pelas ruas do Rio de Janeiro e conheceu a favela do Vidigal. Quem fez o meio de campo foi o produtor musical MC Francês. Ao lado do compatriota, o rapper gravou boa parte do disco. Algumas idas e vindas na ponte aérea Rio-Paris bastaram para que ele finalizasse o projeto, com direito a seis videoclipes rodados no Brasil.

MC Bin Laden participa do álbum na faixa “Des Doigts”. Sadek recebeu o brasileiro em seu estúdio na periferia de Paris, a 50 minutos da torre Eiffel. Na letra, um “ô lá lá” naturalmente francês se mistura ao “bololo haha” do funkeiro. “Foi com o Bin Laden, pelo Youtube, que eu conheci o funk brasileiro”, diz Sadek. “Depois eu conheci outros MCs, como Kevinho, Fioti, todos da GR6 e todos da KondZilla.”

Sem nunca ter pisado no Brasil, o rapper franco-marroquino Lartiste também encontrou o funk graças à internet. “Eu fiquei impressionado quando ouvi pela primeira vez, em 2016, porque havia sons que usamos no rap, mas era no funk, e um funk diferente daquilo que estávamos acostumados”, diz o rapper. “Era como misturar um prato brasileiro com tempero de outro país.”

Lartiste lançou o seu álbum inspirado em funk, “Grandestino”, no ano passado. Na faixa “Mafiosa” ele divide a letra com a brasileira Caroliina. Radicada na França, a cantora encontrou o rapper por acaso nos corredores do estúdio de gravação. O clipe da música tem mais de 277 milhões de acessos no Youtube e cerca de 8.000 exibições na TV — o maior número de transmissões na França em 2018.

“A gente fez um pequeno Brasil em Paris para fazer essa filmagem”, explica Lartiste. No que pretende ser uma festa à brasileira, o clipe mistura destaques de escola de samba, capoeiristas acrobáticos e uma criança empunhando uma bandeira do Bope em meio a um racha de carros.

Outra referência brasileira que povoa o imaginário de rappers franceses é o filme “Cidade de Deus”. Nas mãos do rapper Niska, Mané Galinha virou canção em “M.L.C.” (Manu Le Coq). Bené dá nome a uma música e um clipe de 30 minutos assinados pela dupla PNL. Em seu álbum, Sadek dedicou uma faixa a Dadinho e outra a Zé Pequeno — ou apenas “Zepek”.

O rapper lembra que o filme rodava seu bairro de mão em mão em uma cópia VHS. Tão logo ele fora lançado, jovens da periferia de grandes cidades francesas se identificaram com seus pares brasileiros.

“Na França, não existiam filmes que dialogassem com a gente, com árabes, negros, então nossos modelos eram figuras como os personagens de ‘Cidade de Deus’”, diz Sadek. “A gente pode se reconhecer nas relações do filme.”

Esse diálogo, para Lartiste, também está em elementos comuns ao funk brasileiro e ao rap francês, como a vida precária em bairros pobres, o gosto por itens de marca ou a relação com o esporte.

“Vi coisas no funk que fazem parte do nosso código, como a situação na periferia e essa ideia de ascensão social pela música ou pelo futebol”, diz ele, autor de uma canção batizada “Neymar”. Segundo o site Genius, uma base de dados de letras de rap, há dezenas de menções ao atleta, que atua no Paris St. Germain, e ao menos cinco canções homônimas.

Outros encontros entre rap francês e funk brasileiro podem ser vistos nas recentes transformações dos gêneros.

Vindo dos Estados Unidos nos anos 1980, o rap foi reapropriado na França e viveu sua era de ouro no idioma local nos anos 1990. À época, o país era o segundo maior mercado do gênero, só atrás do mundo anglófono.

Depois de sofrer o baque da crise na indústria fonográfica dos anos 2000, o rap francês voltou a ganhar força na última década com a ascensão de serviços de streaming de áudio e vídeo.

O funk, que tem raízes no hip-hop, engrenou como um produto musical de massa no Brasil na última década. Hoje, os mais badalados MCs e DJs do país são frequentemente vistos em turnês europeias. Ainda que os shows sejam voltados às comunidades brasileiras no exterior, hits como “Bum Bum Tam Tam” ultrapassam fronteiras.

Se o rap francês das primeiras gerações não era feito para dançar, hoje ele embala festas na Europa ao se misturar com funk. E se o funk nunca teve uma proposta contestatória tão explícita quanto o rap, hoje ele pode apontar para esse sentido — é o que pensam os rappers funkeiros.

“Acredito que a chegada desse novo presidente pode trazer respostas desses jovens artistas”, diz Lartiste. “E eu acho que o funk só está no começo, então tem muita coisa que ainda pode ser feita nessa conexão entre Brasil e França.”

FELIPE MAIA

felipemf [at] gmail [dot] com

Discover more from FELIPE MAIA

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading