[Época] O desmonte do maior campo de refugiados da Europa expõe a falta de soluções para os imigrantes

Matéria originalmente publicada na revista Época em novembro de 2016.

Sherzad fixou acampamento ao lado dos canais que levam ao Rio Sena, em Paris. Imaginar o lugar pode suscitar devaneios românticos a muitos – não a Sherzad, sem condições de sobreviver, quanto mais de sonhar. Ele guarda os poucos documentos que lhe restam em um saco plástico preso junto ao corpo. Titubeia para responder se tem 17 ou 18 anos, desconfiado do que pode lhe acontecer. “Paris é melhor que a Jungle”, diz. Com medo do Taleban, ele deixou seu Afeganistão e caminhou por três meses até a Europa. Estancou na Jungle, como ficou conhecido o maior campo de refugiados do continente, em Calais, litoral norte da França. Boca do Eurotúnel, Calais é a passagem procurada nos últimos anos por milhares de refugiados em direção ao Reino Unido. Sem conseguir burlar as barreiras de segurança, Sherzad fixou-se na Jungle como uma das 9 mil pessoas vindas de países como Sudão, Eritreia, Síria e Iraque, entre tantos outros, à espera de uma oportunidade, de um vacilo da vigilância do túnel.

Após seis meses de tentativas infrutíferas de cruzar o Canal da Mancha por baixo, Sherzad perambula pelas ruas de Paris à espera de algo. Não sabe o que vai fazer, como a maioria dos refugiados espalhados pela França desde o início do processo de desmonte da Jungle, no mês passado. A operação tocada por trabalhadores de roupa laranja acaba aos poucos com uma espécie de cidade formada por barracas, contêineres e velhos trailers dispostos num terreno lamacento à beira de uma estrada. Os abandonados que lá estavam, no entanto, apenas se deslocaram. Na Zona Norte de Paris, todos os dias policiais desmontam tendas e retiram barracas nas quais eles se abrigam. A 30 minutos da Torre Eiffel, o chamado “Triângulo dos Migrantes” está ocupado há cerca de um ano por quem busca asilo na Europa depois de meses de travessia em barcos ou rotas clandestinas. A Jungle se subdividiu em “Minijungles”.

A prefeitura de Paris afirma que cerca de 2.500 pessoas se espalham atualmente em uma área com 25 hectares. Pelas calçadas veem-se abrigos de poliéster estampando, entre outras, a marca da maior rede de produtos de esporte da França, doados por tropas de voluntários, junto com roupas e alimentos. Se o acampamento cresce, banheiros químicos são instalados. Em algum momento, a polícia chega. “A polícia quer levar a gente para a delegacia, fazer uma impressão digital e nos deportar”, diz Arman, que deixou a família em uma comunidade rural no Afeganistão e viajou três meses para instalar-se embaixo de uma ponte. A dinâmica se repete até nova desocupação. Minijungles surgem e são desmontadas em Paris. A situação é similar ao desmantelamento da parte sul do campo, iniciado em março. Nos três meses seguintes, cerca de 3 mil migrantes foram evacuados da Zona Norte de Paris. Ao todo, 15 mil migrantes foram expulsos apenas da capital nos últimos 18 meses.

A indústria que formou a Jungle, e dispersa gente pela França, é abastecida pelas diásporas nascidas de tragédias na África, no Oriente Médio e no Extremo Oriente. Os fornecedores de gente são a guerra civil sem limites de crueldade na Síria, o avanço do Estado Islâmico no Iraque, a ditadura na Eritreia, o colapso do Sudão, entre outras desgraças humanitárias. Segundo o governo francês, quase 2 mil migrantes foram encaminhados para centros de acolhimento do país no primeiro dia da evacuação do campo, no mês passado. ONGs de apoio aos moradores da Jungle calculam que cerca de 3 mil pessoas se dirigiram a Paris e região.

Acabou
Na mesma proporção que os refugiados se espalham, a política que viceja na xenofobia fervilha. A ascensão da Frente Nacional, o partido de ultradireita comandado por Marine Le Pen, é um fato tão consumado quanto os migrantes. A turma de Le Pen defende uma dura política antimigração e se manifesta. Recentemente, membros da Frente Nacional, inclusive uma sobrinha de Le Pen, participaram de uma marcha em La Tour-d’Aigues, no sul da França, contra a chegada dos refugiados a pequenas localidades. Perseguidos em seus países, os refugiados que chegaram à França foram empilhados na Jungle e, agora, são desalojados das ruas de Paris ou rejeitados em outras cidades, numa perseguição eterna. Em um mundo que agora terá Donald Trump a liderar o país mais poderoso entre todos, com a ideia pré-histórica de construir um muro na fronteira com o México para barrar migrantes, o Ocidente não parece nada acolhedor.

Se nos acampamentos é comum ver homens vindos de países da África sub-­saariana, do Iraque e do Afeganistão, nas ruas de Paris é frequente a presença de mulheres ou crianças que pedem esmola com placas ou passaporte que os identificam como sírios. Segundo dados do Ministério do Interior francês, entre 70 mil pedidos de asilo feitos em 2015, 20 mil foram atendidos. Os sírios lideram, seguidos pelos sudaneses. “Não podemos deixar as pessoas nessa situação de indigência e não podemos deixar os moradores dessas áreas sofrer tantos inconvenientes”, disse recentemente o presidente francês, François Hollande. Anne Hidalgo, prefeita de Paris, anunciou em maio a construção de dois novos alojamentos no norte da capital para 900 pessoas, mas o projeto é voltado a recém-chegados. Em carta endereçada ao ministro do Interior, Hidalgo pede que a esfera superior encontre uma solução para quem vive nas Minijungles. “Não é função (da prefeitura), nem há capacidade (para abrigar essa população)”, diz ela na carta.

Há duas semanas, a 300 quilômetros de Paris, ainda era possível encontrar migrantes andando sobre os escombros da Jungle. Em 15 dias, forças de segurança, assistentes sociais, dezenas de ônibus e tratores deram fim ao acampamento que se formara às margens da estrada que liga a Europa continental e o Reino Unido. A seus moradores, restaram três opções: permanecer escondidos na região, ser levados a um centro de acolhimento em alguma cidade francesa ou dirigir-se a Paris para se juntar a outra multidão de barracas. Ismael, dentista que fugiu do Sudão em 2011, resolveu ficar – mesmo sabendo do frio que se intensifica com a chegada do inverno e da destruição total da Jungle. “Eu quero ficar aqui para tentar ir ao Canadá, porque muitos sudaneses fizeram isso em 2012 e 2014 pela ONU”, diz. “Pode ser impossível, mas…” Antes da França, Ismael viveu ilegalmente na Alemanha e na Bélgica. A Inglaterra deixou de ser seu objetivo, e para muitos outros, com o recrudescimento da fiscalização.

Em março de 2016, o então primeiro-ministro britânico, David Cameron, anunciou um aporte de e 22 milhões para a construção de cercas e um muro na área. “As pessoas ficam viajando entre os países para chegar ao Reino Unido”, diz Ismael. “Um garoto morreu atropelado tentando ir para lá.” Raheemullah Oryakhel, de 14 anos, foi atingido por um caminhão na madrugada de 15 de setembro, em uma das estradas que dão acesso ao Eurotúnel. Ele tinha direito de ir para a Inglaterra, juntar-se a um irmão que vive em Manchester, mas o processo para realocá-lo corria lentamente. Segundo as organizações Help Refugees e Auberge des Migrants, havia pouco mais de 1.000 menores de idade desacompanhados vivendo na Jungle. Esse número chegou a 1.800 nos dias do desmonte.

Uma diversidade de etnias se reuniu na Jungle por afinidade em torno de um destino triste, busca por uma saída na vida e pobreza. O campo era dividido em pequenos bairros formados segundo a nacionalidade e o poder aquisitivo: áreas elevadas eram espaço para pequenas casas de madeira ou trailers antigos, enquanto barracas e tendas ficavam em lugares próximos a esgotos e banheiros improvisados. Ruas largas levavam a enclaves do acampamento, como pontos de distribuição de comida, e serviam de entrada a restaurantes ou pequenas lojas. O afegão Tura montou um comércio na esquina da rua que ia ao bairro iraquiano. “Microempresário”, Tura agora quer ficar na França. Há três anos ele deixou sua família em Jalalabad, no Afeganistão. Com o dinheiro que conseguiu guardar da jornada comprou um gerador elétrico e materiais e suprimentos para fabricar cigarros – dez por e 1. “Eu trabalho numa loja aqui na Jungle porque preciso”, diz. “Minha família no Afeganistão não tem dinheiro para comer.”

Exceção entre os migrantes, Tura aprendeu francês por ter vivido durante dois meses com uma família em Calais. A energia que usa para carregar seu celular é tão fundamental quanto o tabaco e o filtro que vende. Como ele, muitos migrantes têm algum aparelho para se comunicar com as famílias. Assim como Tura, muitos querem ficar na França; e outros vão chegar. “O problema está nas semanas que vêm a partir de agora”, afirma François Guennoc, responsável pela ONG Auberge des Migrants. “As pessoas que se esconderem na região terão necessidade de ajuda. Aí não saberemos o que fazer. E as pessoas vão chegar, porque elas continuarão a chegar.” O fim da Jungle não significa o fim da migração. Suas causas estão vivas, como a guerra na Síria, no Iraque ou a crise no Sudão. A rejeição não vai resolver nada.

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