FELIPE MAIA

Journalist, ethnomusicologist, d.j.

I’m a Brazilian journalist and ethnomusicologist (anthropology + music + sound) based in Europe. In the past ten years, I’ve worked with a number of media outlets and led several projects crossing popular music and digital culture on topics like Latin American sounds, electronic-sonic technologies and Global South dialogs.
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[UOL Tab] Como o som dos paredões automotivos tem revolucionado a música brasileira

Matéria originalmente publicada no UOL Tab em outubro de 2020.


Os porta-malas de milhares de carros brasileiros guardam um universo. É uma história que data do fim dos anos 80, se agiganta na virada dos 90 para os 2000 e hoje envolve cadeias de produção intrincadas, orgânicas e por vezes subterrâneas. É música popular brasileira no sentido mais amplo do termo — sem letras maiúsculas — de muitos, muitos decibéis. É uma história ainda relegada a umas quantas pesquisas, polêmicas nos telejornais policialescos da tarde e leis inconclusivas. É a história dos sons automotivos, hoje sob a forma de paredões.

Jovem da região de Taboão da Serra, na periferia de São Paulo, Joaquim Lincoln é dono de um desses seres mecatrônicos tipicamente brasileiros. O aparato, sustentado por um pequeno reboque que pode ser engatado a seu carro, é formado por uma pilha de caixas que abriga 29 alto-falantes: 18 para sons agudos, 8 para sons médios e 3 para sons graves. Um sistema pirotécnico de luzes está acoplado à máquina, que vem à vida graças a cabos, fios, baterias e pré-amplificadores. Tudo é ornamentado por adesivos refletivos. Em um deles, lê-se: “Paredinha Mandelão, tem que respeitar”.

O jovem é um dos fundadores da Equipe Mandelão, presença confirmada em fluxos e bailes na periferia da zona oeste de São Paulo e eventos de todo o tipo no estado — de baladas a romarias. Uma equipe, Joaquim explica, nada mais é do que um grupo de amigos que nutre um amor comum pelos paredões. A Equipe Mandelão, criada em 2016, tem cerca de 80 membros e todos tem direito a uma camiseta que uniformiza o time — inclusive meninas, conhecidas como mandeletes. O advogado Yuri Lima, parte da Mandelão, planeja montar seu paredão em 2021. “Pra fortalecer a equipe”, ele diz. “E já tô pegando umas dicas com o Juka, que já tem um sistema.”

O paredão de Juka, o Joaquim, é avaliado em R$ 30 mil. “Mexo com isso tem muitos anos”, diz ele. “Eu comecei depois que terminei a escola, tinha só dois [alto-falantes] graves e uma corneta, e aí quando sobrava um dinheiro eu comprava uma bateria, uma fonte, e conforme a gente vai tocando, o dinheiro vai ajudando”. O esquema é simples: à medida em que um paredão e sua equipe se tornam conhecidos, mais convites eles recebem para animar festas. Em uma noite na Beat House, galpão feito em bar em Taboão da Serra, a “paredinha” fatura R$ 450. Na mesma noite, outro paredão da equipe comanda uma festa no Jardim Colombo. “Antes da pandemia, a gente tocava em umas três festas por semana”, diz Joaquim.

Para promotores de eventos, o interesse por essas máquinas ultrapassa a necessidade de um sistema de som — a Beat House, por exemplo, tem PAs e alto-falantes presos no teto. O paredão, em toda a sua capacidade sônica, visual e socializante, é a verdadeira atração.

Sinal disso são as diversas lives de paredões que vem ocorrendo nos últimos meses. No caso daquela noite em Taboão, o cartaz do evento também dava essa ideia com o paredão centralizado na imagem. E o paredão é mesmo o centro da festa. Gravitando em seu entorno, em frente ao palco, jovens dançam ao som de funk, acendem narguiles e cigarros e enchem seus copos de uísque e gelo de água de coco. Ninguém se importa com a intensidade dos volumes. Com um celular a dois metros da fonte de som, é possível registrar algo entre 90 e 100 decibéis. É provável que um instrumento com precisão científica pudesse registrar números maiores. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o nível de som numa balada comum pode chegar a 110 decibéis, mas uma festa de paredão não é uma balada comum.

Esse incomum é um padrão encontrado em diversas cidades do Brasil. Do sul ao norte, passando por Poconé (MT), terra do lambadão cuiabano, chegando ao batidão gospel em diversos estados do país, entrando nas brenhas da região agrícola do Matopiba com seus piseiros, subindo para o interior do Maranhão com suas serestinhas e ladeando a aldeias indígenas no Amazonas: o paredão é ubíquo, o que muda é a música e o som.

O que mais toca em São Paulo é funk. Isso ocorre principalmente em locais fechados em que DJs, às vezes acompanhados por MCs, embalam as noites com seus computadores plugados aos paredões. Em locais abertos, Joaquim explica, essa função geralmente cabe a membros das equipes de som. Na rua, em sítios ou em estacionamentos, a Equipe Mandelão comanda festas com um rádio de carro com entrada para pen drive ligado ao paredão. Nesse estágio, entram em cena os divulgadores e atualizadores de pen drives, os pontos de conexão entre os diferentes paredões e gêneros de música popular do país. “Eu tenho parceria com o Nicolas CDs, do Maranhão”, diz Joaquim. “Ele me pede som de funk novo e me manda músicas pra eu tocar no meu paredão, aí mantenho meu repertório atualizado.”

A dinâmica de troca é metade do trabalho de um atualizador de pen drive. A outra parte é o que dá nome a seu trabalho. “Todos dias eu atualizo minhas músicas, recebo material de 5, 6 bandas, escuto de 70 a 100 músicas”, diz Pedro Henrique. Ele é proprietário da Hard CDs, uma das inúmeras pequenas empresas que atualiza e vende pen drives de música para todo o Brasil. As centenas de canções chegam até ele por meio de plataformas online ou lhe são enviadas diretamente por empresários do mundo artístico que pipoca Brasil adentro. Cabe a Pedro selecionar o que vai ganhar seu carimbo, literalmente: toda faixa leva uma vinheta em que se ouve o nome da Hard CDs.

“Os divulgadores têm uma importância grande para os artistas porque se você é um artista e não tiver ninguém para divulgar, como você vai crescer?”, diz Pedro. O jovem vive em Piripiri, cidade piauiense de 60 mil habitantes distante duas horas da capital Teresina. Após a conclusão dos estudos, em 2016, Pedro resolveu criar um canal do YouTube para compartilhar vídeos de paredão. Hoje, a Hard CDs acumula cem mil inscritos no site de vídeos, e o sucesso estimulou Pedro a lançar seu próprio negócio da música. “Eu faço em média 400 reais por semana com pen drive”, diz ele. “Mas tem gente que prefere comprar a pasta por email porque pen drive demora a chegar, em dez dias pode estar desatualizado.”

O ápice do mundo dos atualizadores de pen drives é ganhar reconhecimento nacional, como é o caso do Black CDs e Loud CDs, de Fortaleza. Por isso é preciso manter o repertório sempre na vanguarda e os contatos sempre próximos. “O atualizador de pen drive é uma figura muito marcante para fazer circular a música”, diz Tertuliana Lustosa, vocalista da banda de pagode baiano A Travestis. “Não adianta nada se a música só estiver no YouTube e nas plataformas digitais se ela não estiver com os atualizadores de pen drive, que adicionam seus bordões [às canções], e depois chegam aos paredões.”

Sempre que tem lançamentos, Tertuliana compartilha sua música no site SuaMúsica. Atualizadores de pen drive e donos de paredão atentos às novidades baixam a faixa gratuitamente e renovam o repertório. Se a música fizer sucesso nas festas, o artista ganha renome ou se mantém em cena. Foi assim que A Travestis despontou no fim de 2019 com a música “Murro na Costela”. A faixa foi uma das mais tocadas do verão baiano e garantiu a Tertuliana convites para se apresentar com Pabllo Vittar, La Fúria e A Dama do Pagode no carnaval de Salvador.

Segundo Tertuliana, a produção da música é também pensada nos paredões. O que é mais perceptível aos ouvidos são menções a equipes de paredões, como faz a cantora em seu hit — “Paulinho Paredão, Soneca Paredão”, ela canta. O que é tão importante quanto são ajustes nas batidas, de forma que elas soem da melhor maneira possível quando emitidas pela pilha de alto falantes. 

“O momento mais auge é fazer uma festa de paredão e convidar uma banda pra tocar”, explica Tertuliana, lembrando que, no caso da Bahia, o círculo de produção, distribuição e consumo se fecha com as apresentações. “Tem o show de pagode das bandas e esses shows são gravados, aí é um ciclo: o CD novo é gravado, e depois de alguns dias ele vai estar disponível pra atualizar os pen drives.”

Paredões invisíveis

Considerado o tamanho do fenômeno, a literatura acadêmica sobre a cultura dos sons automotivos no Brasil é ainda escassa. A maior parte desta produção está em universidades do Norte e do Nordeste e trata de objetos que hoje cruzam o mundo dos paredões, tais como trios elétricos baianos, aparelhagens paraenses e festas de forró moderno no Rio Grande do Norte e no Ceará. Os estudos e a larga presença de paredões gigantescos nessas regiões dão pistas para retraçar sua história no cruzamento de práticas culturais locais, na ascensão do mercado automotivo e no desenvolvimento de tecnologias digitais.

“Isso começou em 88, 90, quando a lei era branda e podia ter um som bom pra época, mas o trem embrasou nos anos 90 com os paredões mesmo”, diz Samuel Neto, o Netinho Competition. Figura conhecida no Centro-Oeste do país, ele é um misto de divulgador, DJ, dono de paredão e organizador de eventos. Nas suas estimativas, um paredão pode custar entre R$ 50 mil, no caso de modelos mais simples, e meio milhão de reais, no caso de carretas com até 200 alto-falantes — um aparato tecnológico made in Brazil. “Antes a gente importava módulo para paredões, mas hoje a gente exporta”, diz ele ao mencionar a fábrica de componentes automotivos brasileira Taramps.

O engenheiro Renan Lopes conhece bem esse mercado. Uma das maiores autoridades em som automotivo no Brasil, Renan trabalhou na indústria de componentes de áudio brasileira durante cerca de 15 anos — do chão da fábrica à criação de empresas próprias. Hoje, viaja o Brasil oferecendo cursos do para companhias da área, donos de paredão e aficcionados pelo tema. “Quando eu comecei nesse mercado, nos anos 90, a gente tinha algumas poucas referências nacionais”, diz ele.”Mas só em 2012 eu já cataloguei quase 300 fábricas de alto-falante nacionais. Hoje, o mercado de som automotivo brasileiro é referência pro mundo, e tenho alunos em países como Paraguai, Japão, Trinidad e Tobago etc.”

Tal qual uma enciclopédia do som automotivo brasileiro, Renan consegue costurar assuntos tão díspares como acústica, masculinidade e diferenças regionais. Segundo o engenheiro, cada parte do Brasil tem um tipo de som de paredão: no nordeste, por exemplo, se preza pelas frequências mais altas próprias à voz; no centro-oeste, o som fica mais seco, o chamado pancadão. “O paredão não vai acabar nunca porque as pessoas que montam paredão, montam por paixão”, diz ele. “Essa paixão de sempre ter mais é que move o nosso mercado.”

De teor proibicionista, a legislação sobre o uso de paredões mostra a complexidade e a incompreensão que envolve essa cultura. Em outubro de 2016, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) publicou a resolução 624 que proibia qualquer tipo de equipamento automotivo cujo som pudesse ser ouvido fora do veículo emissor. A lei foi revogada no ano seguinte e, desde então, dispositivos municipais tentam dar conta dos paredões. Se é fato que a existência dessas máquinas gira núcleos sociais diversos, reinventa músicas e move a indústria da música e do áudio nacionais, é também fato que o som dos paredões pode ser problemático — algo noticiado em larga escala pela imprensa brasileira.

Questionado sobre esses temas, Netinho Competition se mostrou favorável à jurisdição vigente. Joaquim, da Equipe Mandelão, tampouco mostrou desacordo. “Mas a gente também acaba trazendo lazer pra dentro da comunidade”, afirmou seu amigo Yuri. O piauiense Pedro Henrique lembrou que a classe política faz uso dos paredões em épocas de campanha. Na cidade de Taboão da Serra, carros de som anunciam candidatos a vereador durante o dia nas semanas que antecedem a eleição. À noite, sempre que sai com seu carro, Joaquim sai com receio. Mesmo com o sistema desligado, o veículo já foi apreendido quatro vezes e ele teve de desembolsar quase R$ 20 mil ao todo. “Mas a turma ajuda quando o som vai preso”, diz ele, lembrando que uma equipe que se preze não fica sem o seu paredão.

FELIPE MAIA

felipemf [at] gmail [dot] com

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