[Folha] Coldplay leva seu pop religioso ao Oriente Médio

Matéria originalmente publicada na Folha de S. Paulo em novembro de 2019.


AMÃ – Deu com a cara num muro de pedras quem tentou conhecer a cidadela de Amã nestes últimos dias. O sítio histórico da capital da Jordânia, cujas ruínas datam de mais de mil anos antes de Cristo, estava fechado por causa do Coldplay. Foi ali, no alto de uma das sete colinas da cidade, que a banda britânica lançou seu mais novo álbum, “Everyday Life”.

À exceção de uma apresentação pública marcada para esta segunda, em Londres, e de um especial em vídeo transmitido pela internet, este foi o único show dedicado ao disco. Vocalista e líder do grupo, Chris Martin anunciou há poucos dias que a trupe não fará turnês enquanto não encontrarem uma solução ecologicamente correta para realizar os eventos.

Em Amã, a jovem plateia com celulares em riste já soltava gritos de “yalla” (“vamos”, em árabe) quando a banda subiu ao palco. Houve um atraso no espetáculo por conta do rígido controle de segurança na entrada. É uma norma na região, ainda que a Jordânia seja um oásis de paz em meio à turbulenta vizinhança que se estende de Israel à Síria.

A oferta para locação do complexo arqueológico e a estabilidade política locais não foram os únicos motivos que levaram o Coldplay ao país. O inerente contexto religioso do Oriente Médio é o ponto de partida do novo disco. Em diferentes lugares e formatos, o álbum busca um universalismo pop, comovente, reflexivo ou digno de arrebatamento.

O resultado é uma ponte outrora impensável entre U2 e Kanye West. O grupo ecoa o ecumênico rock de estádio da banda irlandesa, no espírito “coexista”, sem a pretensão hermética da missa do rapper em seu mais recente álbum “Jesus Is King”.

Não é de hoje que Chris Martin aponta para cima. Às vezes, literalmente, como em dado momento do show em que parecia um jogador de futebol comemorando um gol. Estética e discurso do grupo tem a marca do artista que já se declarou “alltheist”, um jogo de palavras para sua crença de que Deus está em tudo, isto é, panteísmo, em oposição a ateísmo.

Essas referências chegam de forma clara ao disco na faixa homônima que tem uma série de aleluias, na canção com ares de salmos cantados “When I Need a Friend” e no gospel americano “BrokEn”.

Há também espaço para um tom antipacifista. É o caso das faixas “Trouble in Town”, que usa o som do que parece uma agressão policial, e “Guns”. Munido de um violão, Chris Martin deixou o palco principal nesse momento para entoar os crus acordes da canção em cima da base de um antiquíssimo pilar em meio ao público.

Em outras músicas, a banda soa tão original quanto ela mesma com orquestrações complexas, produção sofisticada e refrões marcantes. “Orphan” poderia fazer parte dos álbuns “Viva la Vida” ou “Mylo Xyloto”, ambos com produção de Brian Eno. Há corais de crianças, marcações de bateria amplas e sintéticas e os habituais riffs etéreos do guitarrista Johnny Buckland em uma malha perfeita.

Essa canção, executada pela primeira vez em Amã, levou o público a cantar e pular na mais pura expectativa criada por uma boa música pop. A banda não escondeu seu espanto nesse instante e, como agradecimento, atendeu a pedidos pela clássica “Yellow”, um dos seus primeiros sucessos.

Se a atmosfera pós-britpop dessa canção é algo que ficou para trás, o modo de composição de Chris Martin ao piano segue como vício. Suas formas de sonata (ou cantatas) parecem mais do mesmo e ao vivo soam como lamentos que se repetem há 20 anos.

Não é por acaso que durante o show a faixa “Daddy” tenha vindo logo antes de “Arabesque”, um dos singles do disco. Aquela está em total contraste com esta, um poderoso ataque sonoro com timbres de blues africano e guitarra tuaregue somados a virulentos sopros de Femi Kuti e sua banda nos metais.

No palco, as participações especiais de músicos renomados —destaque também para a cantora jordaniana Norah— deram margem para que a banda saísse um pouco dos trilhos do seu arte-pop.

Mas essa ousadia, embora também exista no disco, não é sua essência. O fio condutor entre as diferentes músicas de “Everyday Life” é o espírito congregatório —uma das faixas do álbum se chama “Church”, ou igreja. Nesse lugar, todos cantam as músicas olhando ora para o céu, ora para quem está ao lado.

Para música e mente, é uma via reformista sem os conflitos de uma revolta. A decisão ecológica da banda, então, faz sentido. Se, ao fim do show em Amã, havia seis caminhões, dois geradores do tamanho de contêineres e até canudos de plástico (na área VIP) pelos arredores do palco, quem sabe quanto lixo e gás carbônico uma turnê inteira pode gerar.