[Folha] Dupla de funk transforma hino antifascista de ‘Casa de Papel’ em ‘Só Quer Vrau’

Matéria originalmente publicada na Folha de S. Paulo em maio de 2018.


MC MM e DJ RD, ao fundo. Crédito: Léo Caldas/KondZilla

Em abril, Rodolfo Marcial, 25, e Marcio Rezende de Lellis, 27, entraram armados no edifício Banco de São Paulo, no centro da cidade. Vestiam macacões vermelhos e tinham os rostos cobertos. A ação foi registrada pelas câmeras da produtora KondZilla.

A cena não passava da gravação do clipe de um novo hit do funk. DJ RD e MC MM, como são conhecidos os protagonistas, são os autores da versão pancadão de um centenário hino de movimentos de esquerda. Na paródia de conotação sexual, “Bella Ciao” se torna “Só Quer Vrau”.

“Compus inspirado na cena em que o Professor e o Berlim cantam a música”, diz RD. Os personagens fazem parte da quadrilha que assalta a Casa da Moeda da Espanha. “Bella Ciao” é a canção símbolo deles, que usam roupa vermelha e máscara de Salvador Dalí.

“É uma música muito rica. Cheguei no estúdio e baixei a original, preferi pegar a melodia e fazer o básico: o beat e o pontinho”, diz RD. O básico de que fala, a estrutura do ritmo e a sequência melódica, foi criado em menos de uma hora.

A letra foi finalizada em cinco minutos em parceria de MM e o refrão só veio à mente após algumas tentativas durante a gravação da voz. “Ele vinha com uma palavra, eu vinha com outra”, diz o MC. Surgiu o vrau, gíria para sexo.

Bastou que a dupla enviasse o MP3 com a gravação a alguns contatos no WhatsApp para que a música se espalhasse. Em menos de um dia, já estava no YouTube. Em uma semana, o título era um dos termos mais buscados no Google.

Em 15 dias, MC MM e DJ RD chegaram ao primeiro lugar na lista de músicas compartilhadas no Spotify Brasil.

O sucesso já mudou a rotina da dupla. RD tem recebido pedidos para compor e a agenda de MM está lotada até setembro. Este prepara um show com o figurino e o estilo da série, assim como no videoclipe que deve estrear em breve.

Foi só após o estouro que MM resolveu pesquisar as origens de “Bella Ciao”. “Vi que por trás da música tinha história. A gente vive hoje nas comunidades tudo isso que eles passaram anos atrás: lutavam pela liberdade, e o funk luta pela liberdade de expressão.”

.

Pesquisadores divergem quanto à autoria de “Bella Ciao”, mas é consenso que ela surgiu em áreas rurais no norte da Itália ao fim do século 19.

Na Segunda Guerra, a canção passou a ser entoada pela resistência antifascista local. Desde então os versos estão na cartilha de socialistas, comunistas e anarquistas.

“Mesmo sem conotação política, é um hino que, sempre que ouvido, funciona bem, é uma canção poderosa”, diz Javier Gómez Santander, roteirista de “La Casa de Papel”.

Ele e o diretor Alex Pina escolheram a música como símbolo da quadrilha. “É uma canção que vai e volta em lutas de resistência. Tem algo a mais em ‘Bella Ciao’ e cada vez que ela volta, volta com força.”

Esse atual retorno não seria possível sem o sucesso da série, que ganhará uma terceira temporada em 2019.

Santander credita o sucesso à relação entre público e protagonistas. Há quem se identifique com a solidariedade entre os comparsas e a luta à la Robin Hood da história.

O roteirista evita rótulos ao tratar dos anti-heróis. “É sobre indivíduos e uma estrutura acima: o poder. Há valores na quadrilha que não são de esquerda, nem de direita.”

“Só Quer Vrau” tampouco aborda extremismos. “Nem pensei em política, pensei na diversão do povo mesmo”, afirma RD. Ao ouvir versão da música em funk, o roteirista de “La Casa de Papel” diz, rindo: “Eles pegaram o espírito festivo de ‘Bella Ciao’!”