[Folha] Rappers brasileiros são expulsos das Forças Armadas por causa de suas letras


Matéria originalmente publicada na Folha de S. Paulo em janeiro de 2020.


José Pereira Neto, 21, conseguiria a baixa do quartel na manhã seguinte, após um ano de serviço militar prestado ao Exército. Mas ao chegar ao Centro Conjunto de Operações de Paz, no Rio, teve a notícia: deixaria de ser soldado porque fora expulso. Em vídeo que viralizou entre a tropa, outro soldado exibia armas e fardamento ao som de uma das músicas do outrora Soldado Neto.

Big Bllakk, seu nome de guerra, foi uma das novidades do hip-hop em 2020. Com cinco faixas, ele entrou para uma safra de letristas e produtores cariocas que usam elementos de funk e tendências britânicas do rap em suas músicas.

Um dos colegas sabia que o soldado era rapper e utilizou a canção “Trem Bala” no vídeo que culminou na expulsão de ambos. “Mas eu não apareço no vídeo”, diz o artista. “Alegaram que o outro soldado estava errado por ter exposto o quartel e que eu estava errado por ter feito a música.”

A letra menciona armas, disputas entre rivais e tem trechos como “vou ficar rico esse ano sem tá traficando”. “Eu falo paradas pesadas, mas é uma interpretação, uma história”, diz Big Bllakk. “O trecho que eles pegaram é o que eu falo ‘fé em Deus e nas crianças, com a nove embaixo da blusa’. Me perguntaram por que eu estava falando de alemão, de armamento.”

Além da expulsão, o rapper teve seu certificado de reservista retido por dois anos. Sem ele, não pode exercer cargos públicos e solicitar passaporte, por exemplo. “Houve injustiça porque tinha outros soldados que tinham punição, tinham até sido presos no quartel, e eu que fui expulso”, diz.

Em outubro de 2020, outro rapper teve problemas no quartel. Após mais de três anos na Marinha, Patriick RL, 23, soube que seu posto não seria mantido. Ele é ativo no hip-hop da Região dos Lagos e integra o coletivo Facção Poética.

“O alerta oficial nunca aconteceu”, diz. “Mas um amigo me ligou, dizendo que eu deveria ter cuidado ao postar poesia no Instagram. Tem a questão de protestar nas letras, e a Marinha é do governo, então sempre tem uma contradição. Isso começou a me oprimir.”

Para Patriick, a resistência a sua presença no quartel se confirmou após os atos antirracistas de junho de 2020. Sem qualquer identificação militar, ele foi a manifestações que ocorreram em Rio das Ostras. “Na minha cabeça, não tem como alguém ser advertido por que está protestando por matarem pessoas da sua raça.”

No fim do ano passado o então soldado recebeu a notícia de que não continuaria na tropa. “Fui buscar uma retratação porque preciso do salário”, diz Patriick. “Me disseram que o comandante não precisa ter um motivo [para recusar a readmissão].”

As histórias ecoam casos em que artistas tiveram suas letras ou postagens levadas a júri. Em comum, os processos têm como réus negros que se identificam com o hip-hop.

Em 2017, nos Estados Unidos, o rapper Lawrence Montague foi condenado a 50 anos de prisão por assassinato. Uma de suas letras foi usada como prova no tribunal.

No Reino Unido esse tipo de prática tem ganhado força com o crescimento do drill, subgênero do hip-hop que tem sido apontado como causa de conflitos entre gangues.

No Brasil, o caso do funkeiro Rennan da Penha se tornou emblemático. Livre desde de 2019, o DJ tinha sido condenado por associação ao tráfico e teve anexada ao seu processo sua atividade no Facebook.

Corre entre a soldadesca brasileira que, se uma conduta fora do quartel foge à norma, é bom ter cuidado com o S2. A sigla se refere à 2ª Subchefia, setor de inteligência das Forças Armadas, que se tornou sinônimo de vigilância online entre militares de patente baixa.

“Falaram ao comandante que eu era envolvido com rap, que tinha ido em protestos”, diz Patriick. Segundo a lei que rege a categoria, são proibidas manifestações políticas aos militares. “A liberdade de expressão é prevista na Constituição. Por ser militar, não tenho?”

“Um pessoal apoiava meu trabalho”, diz Big Bllakk, lembrando de seu ano como soldado. “Mas tinham uns caras de patente acima que começaram a me perseguir mesmo.”

O Centro Conjunto de Operações de Paz e a Marinha não comentaram os questionamentos da reportagem sobre as atribuições do S2. O batalhão do Exército afirmou por meio de nota que a exclusão do agora ex-soldado “se deu em decorrência da publicação do vídeo em rede social”.

A Marinha diz que “não compactua com ou pratica qualquer tipo de discriminação, mantendo sólido compromisso com preceitos legais e constitucionais”. Segundo nota enviada à reportagem, “os processos de promoção dos militares e servidores civis são baseados na meritocracia, em conformidade com os requisitos previstos no Estatuto dos Militares, normas e regulamentos vigentes”.