Crítica originalmente publicada na Folha de S. Paulo em outubro de 2025. Esta versão não foi editada.
Maior festival de música eletrônica do Brasil e um dos maiores da América Latina, o Tomorrowland chegou a seus dez anos consolidado entre os fãs das linhas mais pop da música eletrônica. Quando o assunto foge ao mainstream, contudo, o evento desliza. A marca até tenta se renovar, mas vacila na proposta num momento em que o Brasil e a região apontam para o presente e o futuro das pistas.
O festival é uma disneylândia da música eletrônica. O parque, situado na Fazenda Maeda, em Itu, abriu as portas na quinta-feira (9) para cerca de dez mil pessoas que optaram pelo camping oficial do evento. No dia seguinte, as pistas receberam um público de 60 mil pessoas que passeavam por seis palcos por onde, somente na sexta, tocaram cerca de 50 DJs do mundo todo —150 apresentações previstas até o fim do festival.
É a chance que o público brasileiro tem de ver e rever nomes como David Guetta, que ficou encarregado de fechar a noite no palco principal. O DJ entregou um set repleto de versões reduzidas de seus grandes sucessos, como “Sexy Bitch” e “Memories”, nada incomum para seus shows de arena e um deleite para quem se contentava com a música eletrônica radiofônica nos anos 2000 e 2010.
Outro que voltou ao país é Armin van Buuren. Com dezenas de apresentações em solo brasileiro no currículo, o DJ e produtor holandês tem vivido uma nova ascensão na carreira com um resgate do trance —gênero da música eletrônica em que é autoridade. “Há muita gente mais jovem redescobrindo o trance”, diz ele. “É tipo uma blusa velha: se você usar bastante, ela volta a ser legal.”
O DJ holandês fez um set entre clássicos, como a faixa “Techno-Trance”, a novidades do gênero, faixas mais adequadas à maior pista do evento —menos transe prolongado e mais clímaces em sequência. De fato, no palco principal do Tomorrowland Brasil o que dita a regra é a união de “build-up” e “drop”, isto é, a construção de um clímax e seu apogeu —quando vem a batida e o público, com pés na dança ou celular em riste, vai ao delírio.
Além do holandês e de Guetta, o Tomorrowland Brasil deste ano tem 22 DJs que também aparecem na lista “Top 100 de 2025” da DJ Mag. O ranking da revista especializada é uma espécie de baliza do topo da indústria, e seus DJs giram o mundo fazendo dinheiro em casas e eventos gigantes.
Há nomes brasileiros ali, como Vintage Culture e Alok. Ambos tocaram na sexta. Aquele levou seu tech-house pesado e previsível ao Freedom, único palco fechado do evento. Já o goiano apresentou o “Something Else”, seu projeto paralelo que se propõe menos pop ao retornar para suas raízes no psytrance —no Tomorrowland, a proposta ficou mais no papel.
A DJ brasileira Anna, que tocou nesta sexta, também é um dos nomes que já marcou presença na lista. “Hoje em dia eu vejo que a música eletrônica brasileira tem uma força muito grande, principalmente no mainstream”, diz ela. “A gente tem muitos brasileiros agora em destaque no mundo inteiro com os principais nomes da cena eletrônica mundial.”
Muito do que sai do cruzamento entre essa lista e o lineup do Tomorrowland Brasil é ultraprocessado, plástico, um fast-food da música eletrônica —nomes repetidos à exaustão no festival. É o caso de Maddix, DJ holandês que fez um set incoerente e pouco dinâmico nesta sexta, ou das gêmeas Nervo. Habituées do Tomorrowland, elas trouxeram no pen drive uma sequência tediosa de hits, como fazem ano após ano.
Não que parecesse um problema para o público que lotava a pista. Muitos dos que vão ao Tomorrowland Brasil buscam aquilo de sempre, uma tal experiência: a estadia no acampamento, as fantasias e roupas coloridas, a pirotecnia dos palcos com seus motivos entre art nouveau e fantasia medieval. Até mesmo o dinheiro lá tem outro significado. Cerca de 10 reais valem 1 “pearl”, moeda oficial do evento. Neste parque temático, a música muitas vezes é coadjuvante.
Às 22h, no topo do palco principal abriu-se um enorme botão de rosa cenográfico revelando uma flor que disparava feixes de luz. Ao fundo, fogos de artifício explodiam no céu. O ruído das bombas invadia as outras pistas. Uma das vítimas foi DJ Tennis, que chegou a se assustar com a barulheira —o italiano fez um dos sets mais interessantes da noite com um house moderno e dinâmico para uma pista esvaziada.
É essa mercantilização do PLUR (Paz, Amor, União e Respeito), mote de movimentos da música eletrônica dos anos 90, que fez do Tomorrowland uma das grifes mais importantes na música eletrônica. Em 20 anos, a marca foi de festival no interior da Bélgica a uma plataforma que faz festas no mundo inteiro —China e Tailândia no ano que vem—, agencia grandes DJ e se permite a aventuras como lançar livros.
Nos últimos anos, a edição brasileira do festival vem se abrindo a novidades feitas aqui. Segue focado no mainstream, mas passa por experimentos com percussões afro-brasileiras cruzadas a house e techno, flerta com a aspereza das reapropriações de sonoridades britânicas, como o UK bass, abraça o tech-house do centro-oeste (o desande), e tem entradas pontuais de funk, que surge em algumas batidas e samples de voz.
Na prática, porém, a tentativa ainda é tímida. DJs brasileiros que têm expandido a linguagem da música eletrônica nacional e rodam o mundo como destaque da crítica, Cashu e RHR até foram escalados para esta edição do Tomorrowland, mas tocaram para pistas vazias nas primeiras horas de sexta —faixa também reservada a nomes bem sucedidos como Omoloko e Eli Iwasa, no sábado, e Ananda, no domingo.
Espanta que não haja sequer um DJ latino-americano no lineup além dos brasileiros. Nas pistas de sexta, bandeiras de vários países da região eram encontradas a torto e a direito. No camping, espanhol e inglês são língua franca depois do português. Do hard techno ao tribal, não faltam nomes deste lado do mapa que poderiam subir ao palco do festival em 2025.
Quando chegou ao Brasil, em 2015, o Tomorrowland encontrou um cenário em que, fora do mainstream, artistas, fãs e gêneros penavam para manter suas cenas vivas. Outrora marginais, estas cenas hoje vêm se tornando centrais, criam celebridades locais, chamam a atenção da imprensa especializada e influenciam até o topo das listas de principais DJs do mundo.
A isso se soma o poder crescente da indústria: segundo um levantamento da consultoria britânica MIDiA publicado em 2025, países latino-americanos como México e Brasil são líderes em plataformas de streaming no consumo de música eletrônica. Fãs que, no caso do Tomorrowland, são muitas vezes devotos —seguem a marca para onde for contanto que a festa, os fogos de artifício, as “pearls” estejam garantidas.
O Tomorrowland tem no Brasil, mais especificamente na Fazenda Maeda, em Itu, um terreno fértil. Referência inabalável no que há de mais comercial da música eletrônica, o festival poderia tratar com mais atenção o que há de novo nas pistas do país e da América Latina. Não por caridade, mas por curadoria: atentar-se ao alternativo é antever as mudanças do mainstream. A Disney não sobreviveu cem anos com o mesmo parque de sempre.