FELIPE MAIA

Journalist, ethnomusicologist, d.j.

I’m a Brazilian journalist and ethnomusicologist (anthropology + music + sound) based in Europe. In the past ten years, I’ve worked with a number of media outlets and led several projects crossing popular music and digital culture on topics like Latin American sounds, electronic-sonic technologies and Global South dialogs.
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[UOL Tab] ‘Loco por ti, América’: reggaeton e funk avançam e redefinem latinidade

Matéria originalmente publicada no UOL Tab em agosto de 2020.


Jorgelina Andrea pisou pela primeira vez na Espanha com 14 anos. Junto dos pais, ela tinha deixado a cidade natal, Córdoba, na Argentina. Era 2004, ano em que a comunidade de argentinos na Espanha totalizava 152 mil habitantes — o maior índice da história. Na Europa, a família se somava a milhares de outros imigrantes da América e do Caribe. Naquele ano, uma novidade vinda daquele quarto do mundo atravessava fronteiras. 

Era uma canção porto riquenha que falava de carros, mulheres e soava fatalmente dançante com uma batida feita por apenas dois tambores e um prato. “Gasolina”, de Daddy Yankee, estourou, mas poucos imaginavam se tratar de um prelúdio para um aquecimento global da música. Uma mudança nos códigos, nas estéticas e nos discursos da latinidade, uma ideia antiga que se modernizava na velocidade dos carros da canção.

Hoje Jorgelina atende por Ms. Nina, cantora que ocupa algum lugar no espectro que vai do trap reggaetonero de Bad Bunny ao diluído pop de Luis Fonsi; do funk onipresente de MC Fioti às inventividades do hispano-brasileiro Mc Buzz; das histórias de web namoro da chilena Tomasa del Real às lovesongs do grupo dominicano Aventura. 

Como interlocutores que conversam em idiomas similares ou sotaques diferentes — um brasileiro arriscando um portunhol ou um venezuelano aprendendo gírias mexicanas, por exemplo —, as músicas desses artistas se encontram nos ritmos, nos andamentos, nos temas, nas formas de fazer. “A minha música não é reggaeton”, diz Ms. Nina “Minha música mescla tudo que gosto: cumbia, quartetos mexicanos, rap, trap, funk brasileiro.”

Esse caldeirão latino tem rendido. Em 2019, de acordo com o Spotify, apenas três dos dez artistas mais ouvidos no mundo não eram norte-americanos ou europeus: os porto riquenhos Bad Bunny e Ozuna e o colombiano J. Balvin. Em países como Brasil ou México, os Top 10 da plataforma no ano passado contavam apenas com artistas de origem local. 

Os números apoiam o relatório mais recente da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, segundo o qual o mercado latino-americano teve o maior crescimento global nas plataformas de streaming em 2019. “Eu tenho muitos fãs no México, no Chile e na Argentina”, diz Ms. Nina, que recentemente esteve em turnê na América Latina com ingressos esgotados e ia tocar no Lollapalooza — até que veio a pandemia e cancelou tudo.

A apresentação de Shakira e J. Lo no Super Bowl, o último grande evento antes da crise de saúde global, é um bom exemplo da potência dessa maré sonora. E é também algo que põe em perspectiva o que é, afinal, ser latino.

Em artigo publicado em 2009, o cientista político Ailton de Souza (UFMS) traça um panorama histórico sobre as variadas ideias do que é a “América Latina”. A tese mais aceita atribui a origem do termo à intelectualidade francesa do século XIX, em uma tentativa de diferenciar porções do sul e do norte do continente americano. O título e seu gentílico se transformaram ao decorrer do último século, puxados por divergências acadêmicas que contestam o olhar europeu ou valorizam a regionalidade desta parcela da América. 

Em paralelo, correntes migratórias em direção a Europa e Estados Unidos passaram a moldar identidades dos países latino-americanos frente a diferentes grupos sociais. “Latino” ganha outras cores resvalando em palavras como hispânico, lusófono, latino-americano e ofensas como sudaca, zuca e guachupino. A ideia, que outrora designava uma região, confunde-se entre diferentes idiomas e etnias, sujeitos e atores, orgulhos e preconceitos. 

“Eu morava na Bélgica, e tinha essa vontade de representar minha latinidade”, diz MC Papo, criador do hit “Periguete“, o primeiro reggaeton brasileiro. Em 2006, já de volta ao Brasil, ele rabiscou um pedaço de papel com a letra e gravou a música junto do DJ Joseph BH, nome importante dos primórdios do funk mineiro. 

“Eu não imaginava, mas a música explodiu”, conta Papo, que seguiu na música desde então e acabou de lançar um novo single. “Em Bruxelas, quando eu morava lá, tinha rap e a galera que fazia esse som era da África negra ou do norte da África. Eu sentia falta dessa representação para mim, e foi com o reggaeton que vi uma chance de fazer algo desse tipo”.

A julgar pelos dados da última pesquisa sobre o tema, o estudo “As Américas e o Mundo”, Papo fazia parte de um grupo pequeno no Brasil. Em 2015, apenas 4% dos brasileiros se sentiam como latinos. Os motivos seriam a falta de experiência em outros países, o limitado conhecimento de línguas estrangeiras e os baixos níveis de informação. O levantamento é, até hoje, um registro único das matizes de identidade do continente.

Se não é possível apontar com precisão mudanças amplas nesse sentimento, a trilha sonora do Brasil dos últimos anos mostra que país se latinizou um pouco mais — e que músicas de países hispânicos se abrasileiraram também. Anitta cantando em espanhol, MC Bin Laden gravando com o espanhol C. Tangana (entre outros artistas internacionais), Gusttavo Lima tocando bachata. Não são artistas do underground; são estrelas. MC Papo é o pioneiro de um grupo que se insere nessa latinidade musical e contemporânea.

“Ser latino é algo diverso, é por causa dessa diversidade que hoje se fala muito de latinx”, diz a jornalista Núria Net, mencionando um termo cada vez mais utilizado nos Estados Unidos. “Antes, você era mexicano da Califórnia, porto riquenho de Nova York, cubano de Miami, cada um com sua sub-cultura, mas agora, digitalmente, tudo isso se junta, a cultura latinx é algo que reúne tudo isso.”

Núria nasceu na Espanha, foi criada em Porto Rico e viveu parte da sua carreira profissional em Nova York, onde fundou o site de cultura latina Remezcla. De volta a Barcelona há poucos anos, ela encontrou uma nova realidade. “Os jovens escutam reggaeton e eles não se importam com diferentes sotaques, porque eles se veem como cidadãos do mundo”, diz ela. “E eu vejo muitas mulheres latinas fazendo música, como é o caso da Ms. Nina”.

A musicóloga espanhola Marina Arias analisa a importação do reggaeton na Espanha em seu doutorado e observa esse mesmo cenário. “Quando o reggaeton chega ao país, nos anos 2000, existem muitos preconceitos, dizem que é uma música que vem de fora, que é muito simples, mas hoje em dia a geração que cresceu com o reggaeton já o assimilou, já se vê como algo nosso”, explica ela. 

Respeitando diversos aspectos, não é algo tão diferente do que se vê com o funk no Brasil, o dembow na República Dominicana, entre outros: músicas que nascem em um contexto discriminado, majoritariamente negro e que, progressivamente, ganham legitimidade nas esferas do pop graças a artistas e públicos de novas gerações.

“A identidade latina é complexa, mas existe essa etiqueta musical”, diz Marina. “Antes, quando se fala de música latina, se falava de salsa, músicas tropicais, e creio que elas ainda continuam presentes, mas, ao se falar de músicas latinas atuais, de 2010 até hoje, eu falaria de reggaeton, trap latino, funk, dancehall.” 

Essa transição gradual na paisagem sonora do pop é catalisada pela indústria musical. Somente no ano passado, a Record Industry American Association (RIAA) avaliou o mercado da música latina norte-americano em meio bilhão de dólares. E por trás dessas cifras que valorizam gêneros outrora desprezados pelas classes dominantes, operam também processos de controle e apagamento que homogenizam sons e diferentes experiências latinas — indígenas, negras, andinas, caribenhas etc. 


Talvez a cantora Rosalía seja o melhor exemplo dessa encruzilhada entre complexo industrial, diálogos ou dominações, formas de produção digitais, ondas migratórias e chegada de sangue novo. Artista com talento inconteste e contrato com uma grande gravadora desde o primeiro disco, a jovem nascida em Barcelona cresceu ouvindo reggaeton, formou-se em flamenco e hoje cruza o mundo para perrear com J Balvin num dia e rimar com Travis Scott no outro. Em 2018, Rosalía lançou um dos melhores álbuns do ano, “El Mal Querer”, que esgarça as fronteiras entre música tradicional espanhola (notadamente o flamenco) e ritmos latinos urbanos. No ano seguinte, ganhou 3 Grammys Latinos pela música “Con Altura”, gravada com J Balvin.

La Materialista e Jojô Toddynho, Becky G e Gente de Zona, Drake e Bad Bunny, Pabllo Vittar e Thalia são apenas outros exemplos desses casamentos artísticos — ora por amor, ora por interesse. Se não isso, há o tempero latino sorrateiro na propaganda da Chanel ou em hits como “Señorita”, de Shawn Mendes e Camila Cabello, e “Shape of You”, de Ed Sheeran (tente cantar a letra dessa música sobre uma base de reggaeton ou de funk).


Os son latinos ganharam tanta importância que até parece que ser latino agora é cool. As violências a que imigrantes são submetidos pelo mundo — inclusive dentro do continente, como é o caso de cidadãos bolivianos em São Paulo — provam que não é bem assim. Conceber-se latino ainda é algo mais para livro de Eduardo Galeano que para livro de Gabriel García Marquez. Dentro dos clubes, nas festas e nas casas de show, contudo, há algo fantástico em pensar que os latinos estamos por cima. “Quando cheguei na Espanha, ouvir reggaeton não estava bem visto”, lembra Ms. Nina. “Agora toda a gente escuta”.

FELIPE MAIA

felipemf [at] gmail [dot] com

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