FELIPE MAIA

Journalist, ethnomusicologist, d.j.

I’m a Brazilian journalist and ethnomusicologist (anthropology + music + sound) based in Europe. In the past ten years, I’ve worked with a number of media outlets and led several projects crossing popular music and digital culture on topics like Latin American sounds, electronic-sonic technologies and Global South dialogs.
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[Monkeybuzz] Wesley Rangel e WR Bahia: o parteiro e a maternidade do Axé

Matéria originalmente publicada no Monkeybuzz em setembro de 2020.


Era mais um gringo que andava por Salvador em 1988. Paul Simon, outrora metade do duo com Garfunkel, estava de banda pelo Pelourinho quando ouviu um som de percussão lufando pelas ruas do centro da capital baiana. Ao encontrar a origem daquela organizada algazarra, Simon descobriu o Olodum. No dia seguinte ele estava de volta àquela rua gravando a canção “Obvious Child” junto do bloco que se tornaria um ícone da música baiana. Já de volta a casa, no frio outono nova-iorquino de 1990, ele falou à imprensa local sobre suas aventuras na tal World Music. “Gravamos eles [o Olodum] na rua mesmo, porque não tinha um estúdio em Salvador que pudesse receber 14 caras”. Ele tinha razão, mas nem tanto.

Havia, sim, na Bahia, salas que poderiam receber tamanha quantidade de músicos. Nos estúdios da Continental, por exemplo, o próprio Olodum gravara seu álbum de estreia em 1987. Diferente da música de Simon, porém, o disco Egito Madagascar é essencialmente percussivo. O que destoa dos sambas-exaltação “Madagascar Olodum” e “Faraó Divindade do Egito” é a experimental Vinheta Cuba-Brasil”

Este interlúdio é preenchido por notas estridentes e vez ou outra dissonantes de metais. Aliadas a uma linha nuançada de tambores graves, elas levam a música à atmosfera de um Sun-Ra sem necessidade de orquestra. É uma amostra de quão difícil era transformar uma mistura sonora vivida nas ruas de Salvador em canções de alguns minutos. Essa amálgama, que vai dos blocos afros ao frevo baiano, da rumba ao samba-reggae, tomaria conta do país nos anos seguintes sob o termo Axé. Mas esse nome, que abarcaria de maneira indiscriminada um panteão de artistas, só ganharia o mundo após ser empacotado, assinado e firmado em fitas magnéticas no estúdio WR Bahia, a meca do axé.

Uma amostra desse casamento entre rua e formalismo pop está no disco de estreia do Timbalada, de 1993. Cânone da música brasileira, o álbum cruza recursos técnicos às cores da cultura afrobaiana dos anos 1980 e 1990: polirritmias tradicionais e modernizadas; harmonias enxutas, com melodias de canto, teclados e cordas; e letras em línguas e dialetos vários, com jogos idiomáticos, negritude e espírito baiano. Era algo nascido na rua, mas gestado no WR — ou fora dele.

O disco começou a ser produzido em uma tarde de 1993, quando a equipe técnica do estúdio tirou da sala de gravação um monte de equipamentos. De microfones a tripés, toda uma parafernalha foi disposta e preparada para gravação sobre um pedaço de terra ao lado do estúdio. Apertaram o REC. Eram mais de vinte músicos, em sua maioria percussionistas, tocando faixas como “Mulatê do Bundê“. O som rolava até que alguém, ao se deparar com aquilo, exclama: “Vocês estão malucos!?”. Era Wesley Rangel, perplexo ao ver o caríssimo equipamento importado daquele jeito, na rua. Sua expressão só mudou ao ouvir o resultado daquela algazarra capturado em fita: “É isso! É isso!”

Quem lembra dessa história é Pedro Rangel. Seu pai, Wesley, fundou o WR Bahia, usando as próprias iniciais para dar nome ao estúdio, em 1975. A ideia era ter um espaço de criação de jingles na Bahia. Propagandas radiofônicas e televisivas valiam altas cifras nos anos 1970, mas o eixo Rio-SP ainda dominava boa parte dessa renda. Observando esse filão, Rangel aportou suas economias no aluguel de uma sala na então sede do jornal soteropolitano A Tarde. Era um edifício localizado na Praça Castro Alves, o palco de tantos encontros do carnaval baiano aonde só não vai quem já morreu. Para fazer o negócio deslanchar mesmo faltava apenas uma banda fixa, aos moldes de estúdios como a Motown. Era preciso um grupo de músicos que garantisse uma produção contínua com a cara de Salvador.

Segundo a pesquisadora Ayêska Paula Freitas, esse conjunto se consolidou em 1983 com Luiz Caldas, Sarajane, Silvinha Torres, Paulinho Caldas, Carlinhos Marques, Alfredo Moura, Cesinha, Tony Mola e Carlinhos Brown. À época, nenhum desses nomes era muito conhecido fora do recôncavo. Luiz Caldas já havia despontado em trios elétricos e tinha alguma história como cantor de bailes. Sarajane só viria a gravar seu primeiro compacto solo, o Merengue Deboche, em 1985. Brown era um jovem percussionista do Candeal — da água mineral — que fora encontrado por Nestor Madrid, produtor e braço direito de Rangel.

“Nestor disse pra mim: ‘Eu gosto muito dos seus toques de timbal, e eu quero isso na WR’”, diz Brown. “Eu fui ao estúdio e gravei três jingles, aí os três foram aprovados. O Rangel gostou tanto do que eu fiz que no dia seguinte ele foi me buscar em casa e disse: ‘Eu preciso alguém que tenha sotaque de rua’”. A conta fechou com a banda feita: as trilhas publicitárias saíam do estúdio a toque de caixa, e a grana da propaganda financiava os projetos artísticos.

O som rolava até que alguém, ao se deparar com aquilo, exclama: “Vocês estão malucos!?”. Era Wesley Rangel, perplexo ao ver o caríssimo equipamento importado daquele jeito, na rua. Sua expressão só mudou ao ouvir o resultado daquela algazarra capturado em fita: “É isso! É isso!”

A era de ouro

A música de Salvador nos anos 1980 é inconteste fruto do meio. A Tropicália era um passado algo distante, nomes como Novos Baianos e A Cor do Som já tinha vivido seu ápice e a euforia do retorno de Caetano, celebrada com o trio Caetanave no carnaval de 1972, havia esmorecido. Se a herança desses artistas não podia ser apagada, tão ou mais importante era o som latente das ruas.

Ritos musicais de matriz africana, como o ijexá, se encontravam a músicas caribenhas tradicionais, como a Salsa e o Merengue, ou vindouras, como o Reggae de Bob Marley, sem deixar de lado o cruzamento de gêneros nordestinos, caso do galope, do samba duro ou do frevo baiano. De acordo com a pesquisadora Goli Guerreiro, autora do livro A Trama dos Tambores, essa época é marcante para a afirmação negra pelos blocos afros, como Ara Ketu e Ilê Ayê, ao passo que trios elétricos se agigantam e ganham novos astros como Bell Marques ou a própria Sarajane.

A canção “Eu Sou Negão” reflete os contrastes dessa Salvador. Composta por Gerônimo, a letra descreve um encontro pouco amistoso entre um bloco afro e um trio elétrico, cada um representando públicos de maiorias negras e não-negras. Embora tenha sido um dos hinos do carnaval de Salvador em 1987, coube a outra música a função de encarnar o zeitgeist soteropolitano para o Brasil naquele ano. “Fricote“, de Luiz Caldas, é considerada a primeira música do Axé — atualmente, a canção é por vezes questionada pelo cunho racista. Escrita pelo cantor baiano em parceria com o músico Paulinho Camafeu, a faixa foi gravada no estúdio WR Bahia em 1985.

“O Luiz Caldas não queria gravar”, lembra o produtor Luis Fernando Apu, mais um dos nomes a se juntar à constelação do WR com o passar dos anos. “Mas Rangel falou: ‘Só produzo o disco se tiver essa música’.” A música entrou no álbum de estreia solo de Luiz Caldas e levou o artista ao topo das paradas. Sarajane também rumava ao estrelato dando pistas sobre o futuro. Em “A Roda”, de 1987, frases musicais de trios elétricos se encontram com a percussão do bloco afro, e elas se complementam ou trocam de papel.

Dali em diante, o Brasil volta seus olhos para a Bahia, e empresários, produtores e artistas miram o WR Bahia. Quem não queria gravar naquele estúdio de onde saíam os queridinhos do Chacrinha, os clipes do Fantástico, as milhares de cópias vendidas, enfim, a nova galinha dos ovos de ouro da indústria fonográfica? Outrora cunhado como um termo pejorativo por um jornalista, o termo “Axé” foi transformado por artistas negros e populares em símbolo de orgulho, movimento e energia — assim como asé, palavra de origem Iorubá.

“Eu comecei a ter noção de que algo estava começando quando Luiz Caldas estourou com ‘Fricote’, aí as gravadoras começaram a olhar para gente e nos tornamos contratados por elas”, lembra Ricardo Chaves. O músico foi sucesso no Brasil inteiro em 1993 com a canção “É o Bicho” — que, é claro, teve o dedo de Rangel. “Quase toda a minha história discográfica foi ligada à WR Bahia, foi ligada ao Wesley Rangel”, diz o cantor.

Os anos 1990 marcam a era de ouro do estúdio. A banda de apoio do WR Bahia se desfez tamanho o número de grupos que se formavam em Salvador. Cedo ou tarde eles chegariam ao estúdio de Wesley Rangel. Quem andasse por aquelas bandas na época poderia encontrar Margareth Menezes cantando “Elegibô”, Daniela Mercury gravando “O Canto da Cidade” com o Olodum, Tatau repassando a letra de “Ara Ketu Bom Demais”, Ivete Sangalo dando seus primeiros passos com a Banda Eva, Durval Lelys maquinando mais uma ideia arrasa-quarteirão do Asa de Águia, Bell Marques palhetando sua guitarra, Xandy ensaiando para o disco ao vivo do Harmonia do Samba.

A lista não se restringia aos grandes astros locais. Medalhões da música brasileira como Fafá de Belém, Caetano Veloso, Wando e Benito di Paula; mestres como Luiz Gonzaga, Riachão e Bule Bule; bandas de Jazz e de Rock como Bonde Xadrez, Grupo Garagem, Brincando de Deus, Camisa de Vênus e Úteros em Fúria; nomes internacionais como Jimmy Cliff e David Byrne; enfim, se você fizesse música em Salvador ou se estivesse de passagem por ali nos anos 90, o WR Bahia era parada obrigatória.

Segundo a pesquisadora Goli Guerreiro, havia concorrentes em Salvador, mas o estúdio comandado por Rangel manteve-se na liderança ao aliar tecnologia e conhecimento. O WR possuía o aparato técnico necessário para gravar o rico som da percussão e, além disso, também dispunha de produtores que dominavam as cores das músicas de Salvador — os teclados Casio, a guitarra de samba-reggae. O resultado era um experimentalismo de música popular que dava certo. “A gente cortava fita no estilete para emendar uma na outra, gravava instrumentos juntos” lembra Ricardo Chaves. “Tinham situações bacanas, como colocar esponja ou absorvente feminino no bumbo, para abafar o som”.

O WR Bahia era uma fábrica, literalmente. O estúdio funcionava 24h por dia em três turnos de oito horas. Gravações durante a madrugada, como foi com a música “Canto Para O Senegal”, eram comuns. O fordismo do Axé fazia girar o mercado de trabalho da música na Bahia e criava artistas, distribuídos ou contratados por grandes gravadoras. “Do final dos anos 1980 ao final dos anos 1990, 90% da música baiana passou por aqui”, diz o produtor Apu — a cifra é confirmada pela pesquisadora Goli Guerreiro em seu livro.

A contrapartida dessa crescente produção era o uso indiscriminado do termo Axé, que se tornou uma ideia esvaziada e até mesmo indesejável ao fim da década. Se essa etiqueta garantia a músicos baianos a entrada no mercado fonográfico nacional, ela também reduzia aquela diversidade sonora a uma única forma, um produto. Nesse mundo industrial artistas tão díspares quanto Luiz Caldas e É o Tchan eram uma coisa só, era tudo Axé. E, em muitos casos, o preconceito do eixo Rio-São Paulo ainda prevalecia ante aquela diversa música de origem negra e caribenha.

Programas de TV e gravadoras também estimulavam um imaginário em que ídolos brancos, na maioria das vezes, ganhavam protagonismo em detrimento de artistas negros — o exemplo Daniela Mercury-Margareth Menezes é apenas um. Compositores negros como Ytthamar Tropicália, que escreveu músicas como “Guerrilheiros da Jamaica” e “Alfabeto do Negão“, morreram sem que fossem totalmente reconhecidos por sua obra.

Foi justamente o grupo best-seller do WR Bahia que levou aquela ideia de Axé ao apogeu. Liderado por Beto Jamaica e Compadre Washington, o grupo É o Tchan trouxe uma enxurrada de pagode baiano para todo o mundo — e se inspirou nele também, do Japão ao Havaí. Entre 1995 e 2000, o grupo lançou um disco por ano, chegando a cerca de 6 milhões de cópias vendidas. Wesley Rangel dirigiu a produção de todos álbuns.

Vida e sobrevida

Em molduras simples, os discos de platina do É o Tchan ainda estão afixados às paredes do WR Bahia. Um cheiro de carpete antigo e madeira ligeiramente úmida exala nos corredores onde estão dispostos outros marcos do estúdio, como o disco de ouro do grupo As Meninas (donas do hit “Xibombom“) ou o disco de platina do Babado Novo. Gravados entre a virada dos anos 1990 e os anos 2000, esses álbuns não tiveram os mesmos brilho e frescor de anos anteriores.

É sabido que a chegada do MP3 nessa virada de século foi um grande baque para as gravadoras. A pancada foi duramente sentida no mercado do Axé, que também lidava com problemas internos: distanciamento entre a música e as classes populares, o advento do negócio dos abadás — voltado a um público rico, essencialmente branco — e um universo saturado de artistas similares.

“A indústria baiana teve dois grandes pecados”, reflete o produtor Apu. “O primeiro foi abandonar o povo, o popular, e o outro… bem, a maioria dos artistas baianos está há quantos anos na estrada? Eles não deixaram a música se renovar, prefeririam montar clones deles mesmos.”

Sem a grife de outrora, o Axé deixa de ser uma marca interessante a outros gêneros baianos. Arrocha e pagodão começam a se sobressair e produções independentes ganham espaço. Um estúdio do tamanho do WR Bahia não se fazia mais tão importante quanto fora nos 1980 e nos 1990.

Não que isso tenha decretado o fim do estúdio. O WR funciona, mas o ritmo de trabalho é menor. Nada de operação 24h, nada de vai e vem de artistas que arrastavam multidões. O Axé não representa mais que 20% do que sai hoje dali. Artistas de outros gêneros gravam no estúdio e alguns espaços são até alugados para empresas que pouco têm a ver com música. Na maior sala jaz uma parruda máquina de rolo de fitas, um item tão desnecessário quanto aquele espaço todo. Se um dia ele era pequeno para o Olodum que maravilhou Paul Simon, hoje ele recebe com folga um ou outro cantor que solta versos sobre bases feitas em programas de computador.

A história, as lendas do estúdio permanecem. Ricardo Chaves brinca ao dizer que ali havia fantasmas que sumiam com algumas canções — era tanta gente fazendo música que uma gravação era feita por cima da outra —, e corre à boca pequena que Daniel Bangalter, produtor e pai de Thomas Bangalter (aquele do Daft Punk) mora na Bahia e é mecenas de vários artistas que ali gravam até hoje. Quem não aparece mais no estúdio é Wesley Rangel.

Falecido em janeiro de 2016, vítima de câncer de próstata, o produtor deixou como legado um instituto cultural vinculado ao estúdio e uma música de relevância unânime não só no Brasil, mas também no continente latino-americano. Do merengue de Sarajane aos sucessos de Margareth Menezes, passando pela “Rumba de Santa Clara” e por “Beija-Flor“, a América Latina e negra que desemboca em Salvador foi dar no WR Bahia. E quem fala do WR, fala do seu fundador. Tratado como pai por muitos artistas e profissionais da música, Rangel fez questão de, em sua última aparição pública, refutar o título: “Eu sou é parteiro”.

FELIPE MAIA

felipemf [at] gmail [dot] com

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