[VICE] Subi numa aparelhagem para entender a música eletrônica de Belém

O Brasil é cheio de lugares comuns. Por exemplo: Belém é uma cidade quente. Esse é um clichê que qualquer um pode repetir, ainda que Belém seja, na real, um lugar incomum. A cidade é mais que quente. A capital do Pará é um forno que fermenta uma cultura de música eletrônica que se renova no ritmo do seu tecnomelody veloz e frenético. Muita coisa mudou desde que a Gaby Amarantos apareceu pro sudeste com seu tecnobrega empacotado. Eu comprovei isso quando subi na cabine-palco da Superpop, a maior aparelhagem do Pará.

Lá de cima eu vi toneladas de estruturas metálicas, centenas de placas de LED, dezenas de canhões de luz e laser e vários metros de caixas de som. Além disso, eu ouvi muitos, muitos e muitos decibéis. Embaixo e ao redor, o formigueiro humano que dança, sua e bebe cerveja me mostrou como se faz o “S” — o símbolo da Superpop. Eu fiz o “S” assim que soltaram o grave da música com uma cascata de faíscas explodindo a meu lado. David Guetta ou Girl Talk me invejariam mesmo com toda a farra que já viveram no eixo Las Vegas-Ibiza-Boom.

DJ Juninho, um dos donos da Superpop.

“Eu comparo a aparelhagem com a Tomorrowland e o UMF”, me disse o DJ Juninho, um dos donos da festa. Ele e mais três DJs comandam o Águia de Fogo, o apelido carinhoso da maquinária da Superpop que funciona com pelo menos dois samplers, dois MPCs, uma mesa de som, três notebooks com Seratto e um PC dedicado a anotar os nomes que receberão os abraços dos DJs. O set não só deixa no chinelo muito aparato de live por aí, mas também põe por água abaixo essa história de atacar de DJ. Isso aí não cola em Belém.

Ainda assim, o Juninho resumiu a aparelhagem de maneira simples. “Ela é uma reunião de equipamentos empilhados acompanhados de muita luz, muito LED e show pirotécnico. E tem muita interação com o público.” Claro que a gente trocou essa ideia horas antes de ele detonar na festa, em meio ao silêncio estacionário do estúdio da Rede Liberal – apesar do nome, é proibido entrar de bermuda no prédio. Lá, o Juninho toca um programa de rádio dedicado ao tecnomelody, ritmo mais explorado por ele nas suas festas.

O mais original estilo paraense.

No final da transmissão, ele me contou que a música eletrônica de Belém tem vivido uma transformação essencial de ritmo. É a volta do brega feito pra dançar a dois, embora haja quem chame isso de arrocha. Para ele, o estilo não é uma reprodução do arrocha filho do sertanejo universitário, famoso na voz de nomes como Lucas Lucco e Israel Novaes. Tampouco dá pra dizer que esse brega é uma réplica do arrocha forrozeado do Nordeste feito por caras como Pablo do Arrocha e Silvano Salles. A proximidade entre as duas regiões e a onipresença da indústria cultural Rio-São Paulo até leva o som de todos eles para Belém, mas o que pega mesmo ali é o resgate do mais original estilo paraense.

“O que a gente está tocando agora é o brega”, sentencia Juninho. E quem confirma esse lance foi o Waldo Squash, DJ da Gang do Eletro e especialista quando o assunto é música eletrônica paraense. “O arrocha é um ritmo que surgiu e veio se acoplando, mas em cada local ele se desenvolve de uma maneira diferente. Aqui é aquele breguinha mais antigo que a galera não chama de brega, mas chama de arrocha porque ele é a parada do momento. Com a explosão do arrocha, esses breguinhas estão ressurgindo.” Segundo o Waldo, até o novo disco da Gang deve nadar nesse rio. Previsto pra ser lançado em novembro, o álbum terá linhas melódicas mais presentes que no primeiro disco.

Juntinho é mais gostoso.

Essas mudanças para melodias mais leves vêm acompanhadas de andamentos mais lentos, pelo que me contou o Juninho. Algo que lembra mais ou menos a febre do deep house e dos graves prolongados que assola clubes pelo mundo todo. “A gente vem percebendo esse apelo do público por um BPM reduzido. A gente pesquisou e isso tem sido uma tendência mundial”, diz ele. E engana-se (como eu) quem pensa que os BPMs foram de 120 para 90. “Foram de 190 pra 140. Era muito rápido. A gente detectou essa necessidade, o público tinha perdido a identidade de dançar agarrado”, arremata.

A pista ferve na Superpop.

Como um bom DJ, no entanto, Juninho sabe que em alguns momentos a pista tem que ferver. Isso ainda é regra no Pará, onde o tecnomelody é o ritmo por excelência das aparelhagens. Na festa fica claro que o bate-estaca ainda resolve quando o negócio é bater coxa. Aí dança gordo, magro, novinha, moleque zica, cadeirante, o que for. Tudo se acelera com a caixa em contra-tempo sobre bases que lembram música caribenha. “A gente começa a inserir um funk, um dance, pra meter um fogo e depois voltar com o brega”, fala Juninho enquanto mostra uma versão de “Dom Dom Dom” em que as vozinhas dos MCs Pedrinho e Livinho lembravam os esquilos do Alvim, tamanha velocidade e recorte.

Entre tantas faixas novas, poucas sobrevivem à descartabilidade. “O máximo que essas músicas ficam rodando no mercado é um mês”, sentencia Walmir, radialista que ajuda o Juninho no seu programa. Na aparelhagem, os clássicos se revezam com novidades de bandas que veem a festa como termômetro da sua produção. “A gente toca e vê se a galera gosta. A galera não gostou? Volta pro estúdio, dá uma reformada na música”, me disse o Juninho, com pose de produtor musical.

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Algumas horas antes de subir na aparelhagem do Superpop pra registrar um grande momento no meu currículo, eu colei na Búfalo do Marajó. Essa é a outra grande festa de aparelhagem de Belém. Com apenas quatro anos, eles conseguem fazer frente à Superpop quase trintona. Existe até uma certa rivalidade entre a galera que faz o “S” e a galera que faz o chifrinho — aquele símbolo que já foi de um negócio chamado rock. O Josias, dono e DJ da Búfalo, desconversou. “No Pará, tem rivalidade só no RePa”, brincou ele, lembrando do clássico futeboleiro mais antigo do Brasil, Remo vs. Paysandu.

Bricadeirinha da aparelhagem do Búfalo do Marajó.

Capacidade sonora não falta à aparelhagem do cara. Quando subi na cabine, experimentei uma sensação nunca antes vivida que apelidei de lufada sônica. Bastou que soltassem um sampler de turbina de avião para que minhas orelhas sentissem o vento de um motor de Boeing que não passava de um MP3 amplificado por centenas de watts de potência. Esse era o caldo do qual imergia o público presente na casa de teto baixo. Uma caldeira paraense sinestésica com muito som, muita fumaça, muitas luzes e muitos abraços para a turma.

Na porta da Búfalo do Marajó.

O Carlinho, taxista cicerone da nossa empreitada, disse que nem era bom comentar a disputa das festas com seus donos. Por outro lado, ele preferiu não contar que elas rolavam em alguns dos picos mais violentos do Pará: Ananindêua, cidade com o 5º maior índice de homicídios do Brasil segundo o último Mapa da Violência. Isso sem falar na Terra Firme, bairro que recebe a pecha de “Faixa de Gaza Paraense”. Descobrir isso tudo de volta à redação fez todo o sentido. O destaque nas quebradas de Belém vai mesmo para as aparelhagens.

“É um produto vindo da periferia de Belém que conquistou a sociedade paraense”, destaca Juninho. Isso era evidente no rolê, mas quem me confirmou esse poder de conquista foi o Grande do Som, um dos fabricantes de aparelhagens do estado. Colei na oficina dele pra entender como eram feitos aqueles bichos mecatrônicos e quanta grana rolava nesse mundo. “Pra montar uma aparelhagem como a Superpop você gasta cerca de R$ 1,5 milhão”, entrega.

É de se espantar que eventos que vendem baldes de cerveja a mais ou menos R$ 20 cobrando entrada (às vezes nem isso para as mulheres) consigam girar tanto dinheiro. A explicação está na quantidade. Só não se encontra aparelhagem no Pará às terças-feiras – dia de manutenção. No mais, as festas rodam Belém, sua região metropolitana, cidades do interior e até cidades de outros estados, como Amapá e Maranhão, em turnês amplamente divulgadas e lotadas. O Superpop, por exemplo, tem uma garagem com quatro caminhões tomados por equipamentos de som.

Oficina do Grande do Som.

Toda essa estrutura encontra seu ápice no mês de outubro. Durante um final de semana, a cidade de Igarapé Açu organiza a Festival da Cerveja, festa dedicada à bebida que rega as gargantas do incansável paraense baladeiro. O festival reúne as grandes aparelhagens do Pará em um final de semana que rola no pique de promoção de supermercado, porque quem ganha é você. Não bastasse a cerveja vendida a um real, ainda é possível ir a festas conhecidas em todo o estado, como a Ouro Negro, a Rubi, a Tupinambá, o Princípe Negro e, claramente, a Búfalo do Marajó e a Superpop.

Um dia antes de partir, o Carlinho me disse que eu voltasse pra esse festival – algo que o Juninho, o Josias e o Grande do Som também tinham me dito. À essa altura, eu já fazia as contas pra comprar a custosa passagem de volta pra Belém, ainda que fosse um valor bem menor que ter minha própria aparelhagem. Depois daqueles dias, eu estava convencido de que o Juninho estava certo com seu paralelo do início, mas me questionei quando vi os vídeos das últimas edições do Festival da Cerveja. Talvez o certo seja comparar a Tomorrowland às aparelhagens em vez de comparar as aparelhagens ao Tomorrowland.


Matéria originalmente publicada em setembro de 2014 no Thump. Fotos por William Alencar.

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