[UOL Tab] Gemidos e sussurros: sites de sons eróticos desafiam a ‘ditadura da visão’

Matéria originalmente publicada no UOL Tab em novembro de 2020.


A maioria conhece como voyeurismo. Sigmund Freud chamava de “schaulust”. O prazer em olhar — ou “escopofilia”, para os psicólogos — foi descrito em 1905. O termo caberia perfeitamente no mundo hiperconectado de hoje, em que telas abundam e cenas pornográficas ou simples nudes são commodities baratas. Mas, ao menos nos campos da arte e da ciência, a ditadura da visão vem sendo bastante questionada. Sexo verbal é o estilo de muitos, e sons podem excitar tanto quanto.

https://soundcloud.com/itswet/sets/glove-which-touched-the-moss

Nesse universo sônico cabem elementos sutis e necessários — como a moldura de um quadro pendurado na parede de um museu. É o caso das técnicas especiais de sonorização de cenas de sexo na série Normal People ou do uso da áudio-descrição anunciada pela produtora pornô Sexy Hot. Mas, sem lançar mão de imagens e dando espaço à imaginação, também entram nessa onda tudo que é voltado exclusivamente para o que se ouve em matéria de sexualidade.

A plataforma WET (Weird Erotic Tension) entre nessa categoria navegando entre arte-som, sound design e experimentos sonoros. O projeto nasceu como parte do “Sex is Pure”, um dos primeiros sites russos a abordarem temáticas do sexo de teoria e expressão artística. “Minha descrição favorita para o WET é ‘pesquisa sônica de sexualidade’, e isso significa que estou buscando explorações e representações não-convencionais, diversas e interessantes deste tema”, explica Sasha Zakharenko, artista fundador da WET.

Disponível como uma página no SoundCloud, o repositório de sons de Zakharenko reúne intervenções de artistas de diversos países. Na faixa “Female Presenting Anxiety”, uma sibilante voz feminina articula com profundidade as sílabas de um texto sobre peles, namoradas e sexo oral. Em “Sweat Drape”, respirações entrecortadas, ruídos ásperos e glitches digitais criam uma paisagem sonora tétrica — algo distante dos gemidos que fariam a trilha sonora típica de um filme pornográfico.

“A ideia é mudar paradigmas de como a sexualidade é percebida e expandir seu significado, então quanto mais obscuro e estranho for o som, melhor”, diz Sasha. “A relação com a sexualidade pode ser muito abstrata, e eu estou interessado na subjetividade dessa questão.”

Menos abstrato, mas igualmente subjetivo é o projeto Orgasm Sound Library, a Biblioteca Sonora do Orgasmo. A plataforma é exatamente o que diz seu nome: um grande acervo online e gratuito de trechos de áudio registrando o ápice do sexo. Nas vozes de mulheres de todo o mundo, as gravações anônimas registram gritos, gemidos e suspiros organizados segundo etiquetas como #Deep, #Clitoris e #Explosive.

“A biblioteca é uma forma de reivindicar o prazer e mostrar dados sobre a sexualidade”, explica Elsa Viegas, co-fundadora do projeto. Segundo ela, a ideia surgiu logo que ela criou a empresa de sex toys Bijoux Indiscrets junto da sócia Martha Aguiar. “Lançamos o primeiro vibrador e nesse momento fomos confrontadas por uma série de perguntas de mulheres sobre como se usava aquilo. Então fizemos um estudo e vimos que a pornografia tinha criados mitos sobre o sexo como, por exemplo, que para se ter prazer era preciso haver muito barulho”, afirma Viegas. “Por isso pensamos em uma maneira de falar sobre esses temas”.

Iniciado em 2016, o projeto logo teve projeção na Espanha — onde a empresa da dupla está sediada — e chegou a acumular meio milhão de visitas por mês conforme ganhava visibilidade internacional. Hoje a biblioteca tem mais de dois mil orgasmos registrados em áudio. Cada um deles é acompanhado por uma representação gráfica em que as frequências sonoras do momento de gozo se transformam em círculos de diferentes tons, cores e formas.

“Quando criamos isso, pensei: ‘mas quem vai mandar áudio pra essa plataforma!?”, lembra Elsa, que aprova todas as gravações junto de sua equipe antes de deixa-las dispoíveis na biblioteca. “Desde então, já fui contatada até por uma pessoa que pediu pra validar uma gravação que tinha sido enviada!”

O protagonismo feminino da plataforma, segundo sua criadora, também abre espaço para debates sobre os mitos e paradigmas masculinos por meio do som. “Se nós reprimimos a sexualidade feminina, a sexualidade masculina está muito condicionada, porque os homems estão condicionaddos a agir de um modo ou de outro”, diz Elsa. “Acho que o som está vinculado a isso: o som é encarado como uma debilidade, uma coisa feminina.”

Hoje, quatro anos após sua fundação, a Orgasm Sound Library segue ativa ganhando públicos em uma outra tendência articulada entre som e prazer: a audio erotica. Essa categoria do registro sonoro tem ganhado espaço ao se enquadrar como um misto de podcast, ASMR, gravações íntimas e pequenos clipes de áudio — tudo gravitando entre o que pode ser ouvido no caminho da sexualidade.

“A pornografia deixa pouco à imaginação e o áudio, ao contrário, dá mais espaço à imaginação”, teoriza Elsa. “Quero acreditar que a audio erotica é uma forma de evadir e levar nossa mente, trazer algo bom para as pessoas.”

Pós-pandemia e a fronteira do som
Se a pandemia reduziu drasticamente a atividade em aplicativos de paquera, tipo Tinder e Bumble, ela também colaborou para o crescimento do mundo da audio erotica. Serviços como Quinn (“o Spotify da pornografia”, segundo a fundadora Caroline Spiegel) e Dipsea (plataforma de audiocontos sensuais) viram seus números de usuários aumentar desde que o isolamento social mudou relações interpessoais em todo o planeta.

Nesse mundo onde contatos físicos são restritos, a conexão entre som e sexualidade não é somente explorada como objeto estético e físico. Ela também promove uma corrida tecnológica.

Por conta disso, o pesquisador brasileiro Leonardo Mariano Gomes teve de passar algumas noites em branco nos últimos meses. Da sua casa em São Paulo ele colaborou com a pesquisadora Angelina Aleksandrovich, baseada em Londres, no desenvolvimento de um projeto de interface de realidade virtual para experiências sexuais. O sistema envolve óculos de imersão em ambientes digitais, acessórios de resposta tátil, essências olfativas e, claro, fones de ouvido. Tudo fica conectado a uma espécie de mochila.

O projeto foi posto à prova em 140 voluntários. Em salas fechadas, os participantes vestiam o aparato e recebiam estímulos sensoriais da máquina segundo comandos de software ou de um parceiro. “Sempre que acontecia uma coisa no espaço físico, havia uma reposta no espaço virtual”, explica Leonardo. “Assim foi possível mapear em que parte do corpo a pessoa estava se tocando e isso dava repostas diferentes a ela, como por exemplo diferentes tipos de som”.

Os resultados, publicados em agosto por Angelina e Leonardo em uma revista científica de robótica, mostraram que a audição foi o segundo fator mais importante para a excitação dos participantes durante o experimento — atrás apenas da visão. No caso dos experimentos de casais, a importância de ambos sentidos foi quase a mesma. Cabe ressaltar que os participantes eram em sua maioria individuos do gênero masculino e feminino em proporções quase idênticas.

“Esse projeto mostrou que há dependência entre o estímulos para causar excitacao sexual”, diz Leonardo. “Por exemplo: sempre foi dado como certo que homem é mais ‘visual’ e mulher é mais ‘auditivo’, mas não é bem assim.”

Imagem sugerida por realidade virtual em experimentos sensoriais de Leonardo Gomes e Angelina Aleksandrovich

O pesquisador brasileiro acredita que a evolução dos sex toys está em compasso com esse diálogo entre som e sexualidade no atual contexto global. Em vez de apenas emular uma situação entre quatro paredes, a ideia é criar novas experiências. Por isso dispositivos vestíveis como pulseiras, relógios e fones de ouvido tem recebido especial atenção da indústria dos brinquedos sexuais.

No Brasil, segundo Leonardo, o desenvolvimento de novas tecnologias nessa área ainda é escasso. O pesquisador tem outros dois projetos publicados: o TouchYou, um bracelete que transmite o toque de uma pessoa a outra a distância, e o Neurodildo, um consolo que pode ser controlado por ondas cerebrais — voltado a pessoas com deficiência. “Eu tentei tirar uma patente pela USP com o projeto do Neurodildo, mas ela foi barrada pelo tema [do objeto]”, diz o pesquisador.

Esse descompasso entre indústria e academia não é incomum quando se fala de sexualidade. E projetos como a WET e a Orgasm Sound Library mostram que os experimentos de som e sexualidade estão na seara das artes, da sociologia ou mesmo da publicidade. Por isso mesmo essa é uma tendência que deve ganhar mais amplitude nos próximos anos. “No mundo dos sex toys, o que vai vir a seguir vai ser o paladar antes do olfato”, diz Leonardo. “Mas o som já é algo que está acontecendo.”