FELIPE MAIA

Journalist, ethnomusicologist, d.j.

I’m a Brazilian journalist and ethnomusicologist (anthropology + music + sound) based in Europe. In the past ten years, I’ve worked with a number of media outlets and led several projects crossing popular music and digital culture on topics like Latin American sounds, electronic-sonic technologies and Global South dialogs.
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[UOL Tab] Grupo Garotos Apyãwa faz forró moderno com letras sobre as lutas da etnia

Matéria originalmente publicada no UOL Tab em janeiro de 2020.


Dia de show exige figurino à altura. Joílson veste a justa calça branca, a camiseta com a estampa da Emporio Armani (grande feito o S no traje do Super-Homem) e bota o cocar de penas azuis sobre a cabeça. Quando sobe ao palco, microfone na mão, o parceiro Adilson já soltou a base no teclado Yamaha. A canção segue a cartilha da atual música popular brasileira. Ao menos metade dela. Passados os versos sobre pegação, Joílson canta sobre a chegada do homem branco ao território que hoje chamamos de Brasil. A primeira parte vem na língua do colonizador. A segunda, vem na língua Tapirapé. Um jogo de idiomas e temas que faz valer o epíteto da banda: Garotos Apyãwa, o batidão diferente.

Além de Joílson e Adilson, a banda de forró moderno também é formada por Deidson (backing vocal), Fabíola, Kislene e Carmem (dançarinas). Todos são Tapirapé — ou Apyãwa, em sua própria língua —, grupo étnico que ocupa a área do médio Araguaia, na região entre o nordeste de Mato Grosso e o sul do Tocantins. Há séculos os Tapirapé chegaram a esse centro de Brasil. Há três anos, Joílson começou a banda. “Tinha um grupo na cidade chamado Garotos Baladan, e me convidaram para fazer música com eles”, lembra o vocalista. “Fiz versão de música do Forró Boys, do Pepe Moreno, sempre falando sobre a situação da nossa comunidade, na nossa língua.”

A cidade de que fala Joilson, distante 40 km da aldeia Tapi’itawã, é Confresa. Outrora Vila de Tapiraguaia, o povoado foi rebatizado por metonímia: Confresa é a burocrática sigla da mineradora que ali se instalou nos anos 1970. Trazendo investidas de exploração irrestritas e/ou ilegais, o português falado faz tempo se embrenha na região. Junto dele também veio a música. Como gostava de forró, tal qual muitos de seus parentes — como muitos indígenas se referem a outros povos originários —, Joílson resolveu fazer sua própria banda. “A língua portuguesa estava entrando na nossa língua”, diz ele, fazendo um favor ao repórter ao falar no idioma europeu. “Estava preocupado, pensando em como contribuir pra minha comunidade.”

A música “Axerapata xe pityga”, segundo a banda, pode ser traduzida para “Ao revelar-se uma criança”. O trecho que a maioria dos brasileiros entende fala de pisadinha e rima “boteco de beira de estrada” com “saudade está bloqueada”. A maior parte da letra, contudo, pincela o mito da origem do povo Tapirapé e sua relação com o rio de mesmo nome. 

Outras canções têm letras apenas em língua Tapirapé. “Pemawite xepe xe’ega pejnop”, afirma a banda, pode ser traduzido para “Acredite no que se diz”. O refrão faz um apelo: “Caciques/lideranças nos contam, acreditem nisso para nós fazermos coisas boas”. Um manifesto feito para o piseiro. 

“Tem forró nacional em língua portuguesa, de não-indígena, que tem um impacto muito forte entrando na aldeia, aí começou essa ideia de tocar essa música na língua indígena”, explica Maurício Tapirapé. Ele é o faz-tudo da banda. Foi ele quem filmou o clipe às beiras do rio Tapirapé e ele também é responsável por agendar shows e ensaios. Até o momento, o Garotos Apiyawã tem quase quarenta músicas. “A gente grava na cidade, é cem reais a hora de estúdio”, explica Maurício. “Em uma hora a gente consegue gravar umas 10 músicas”. Depois, é só jogar as faixas em sites como SuaMúsica ou YouTube e compartilhar links ou apenas o arquivo de áudio no WhatsApp dos parentes.

Todas as músicas são feitas no molde da pisadinha, o mais recente e bem sucedido sub-gênero do forró. A cada apresentação, Adilson, o tecladista, lança a base de percussão eletrônica no instrumento e acompanha o ritmo com melodias e acordes que variam conforme a canção. Ele conta que aprendeu a tocar vendo vídeos na internet. “O pessoal gosta de forró e pisadinha aqui na aldeia”, ele diz. “E eu venho acompanhando essas músicas faz tempo no YouTube. Eu comprei um teclado, vim tocando, e sempre tive o sonho de tocar numa banda. E aí um dia o Joílson me chamou pra fazer parte do grupo.”

As primeiras apresentações, em 2018, foram no barracão da aldeia Tapi’itawã, onde vivem os integrantes da banda. Hoje em dia eles já recebem convites de outros povoados da região do Araguaia. Noite de festa Tapirapé tem Garotos Apiyãwa, vale ano novo, aniversário, formatura, o que vier. Enquanto a banda faz o som, a plateia se divide em dois grupos: a turma que dança de casal e a turma que filma a performance com celular. Tem ainda a criançada, que assiste o espetáculo. “E algumas pessoas da cidade vem participar”, lembra Maurício. Ele também gerencia o pouco dinheiro que entra após cada evento. “A gente usa mais o que a gente ganha para comprar coisas pro grupo”, diz.

O sucesso da banda, lembra o manager, não vem livre de alfinetadas. “Uns falam que o forró não é cultura indígena, e as meninas que fazem parte da banda também recebem muitas críticas”, afirma Maurício. “Mas as pessoas que criticam não conseguem ficar sem acompanhar nosso trabalho!”

Não por isso o ano de 2020 foi difícil para a Garotos Apyãwa. A pandemia reduziu o número de shows e, pior, o já depopulado povo Tapirapé. “No início perdemos pessoas que a gente conhecia”, diz Maurício. “É difícil aceitar.” Além disso, a Terra Indígena Urubu Branco — demarcação de direito dos Tapirapés — é palco de invasões de madeireiros e conflitos fundiários desde os anos 90. O racismo nas áreas urbanas é outro flagelo. Em 2018, foi morto a pedradas em Confresa o indígena Daniel Kaixana. Ele era professor e foi vítima de latrocínio.

Joílson também é professor e ensina linguagem na aldeia em que vive. Suas músicas servem de material pedagógico nas aulas. “E tem mais professores que têm conhecido a banda e tem trabalhado as músicas com as crianças”, diz ele enquanto repousa numa rede. Depois da jornada dupla de escola e ensaios, ele e os outros integrantes da banda tinham uma longa viagem pela frente. Dez horas de estrada para uma apresentação em General Carneiro, aldeia Meruri. No dia seguinte ao show já tinha vídeo no YouTube. Em casal e girando como numa ciranda, o público dançava ao som do Garotos Apyãwa.

FELIPE MAIA

felipemf [at] gmail [dot] com

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